Criando espaços de diálogo

Dayane Aparecida Nogueira Borges

A infância em São Paulo. A descoberta na escola do gosto pela literatura. A faculdade de Letras e o trabalho com refugiados. O trabalho como escritora e nas redes sociais, falando sobre literatura, filmes, séries e assexualidade.



(00:18) P/1 - Boa tarde, Dayane. Tudo bom?

R - Boa tarde! Tudo sim, e com você?

(00:24) P/1 - Tudo ótimo! Então a gente vai começar com a pergunta mais básica: eu queria que você me falasse seu nome, local e a data de nascimento.

R - Eu sou a Dayane Borges, nascida e criada em São Paulo, moro aqui ainda e nasci em 11/06/1997.

(00:46) P/1 - Te contaram como foi o dia do seu nascimento?

R - Sim, me contaram. Minha mãe sempre me conta que foi em uma quarta-feira, estava muito frio, já estava quase entrando no inverno. Foi antecipado, eu nasci de oito meses ao invés de nove, então estava aquilo, tipo, de acontecer, não estava esperando direito, mas depois deu tudo certo.

(01:13) P/1 - E ela te contou também, por que ela escolheu Dayane, seu nome?

R - Olha, isso também foi uma confusão, porque ela só fez um ultrassom e ela achava que era um menino, não uma menina, então ela só tinha pensado em nomes de menino, porque não tinham conseguido ver direito e falaram: “Ah, talvez seja um menino”. Então se prepararam para “talvez ser um menino” e lá na hora eles tiveram que pensar; saiu na cabeça do meu pai o nome Dayane, que ele já tinha ouvido. E aí ela gostou e a minha mãe falou: “Só que tem que ser com y, não pode ser com i. Pode ser Dayane, mas tem que ser com y.”

(01:56) P/1 – E falando na sua mãe, eu queria que você me falasse o nome dela e contasse um pouquinho sobre ela e a sua parte materna da família.

R - Minha mãe se chama Elaine. Ela vem de uma família… A minha bisavó veio de Minas Gerais para cá e fez toda a família dela aqui - os filhos dela e o meu bisavô, que já faleceu. A minha mãe foi uma criança que foi boa parte criada pela minha bisavó, então ela acaba tendo ali duas figuras maternas ao longo da vida.
Ela engravidou, me teve quando tinha dezenove anos, então [teve] aquela questão de sair da escola, cuidar da bebê, mas ela voltou para a escola depois, para terminar os estudos. Sempre trazendo essa preocupação, de se qualificar, de estudar, de não desistir dos sonhos, essas coisas assim…

(03:02) P/1 - E da parte do seu pai? Queria que você comentasse um pouco sobre ele e também sobre a parte paterna da sua família.

R - Meu pai também era jovem quando me teve, ele tinha 21 anos quando eu nasci. A minha avó era filha única, mas ela teve uma família muito grande, então ela teve oito filhos, contando com o meu pai, e esses filhos tiveram bastante filhos. Eu tenho quase trinta primos, então é uma família bem grande. Minha avó sempre brinca que ela foi sempre foi sozinha durante a infância e adolescência, mas da vida adulta pra frente, ela nunca mais conseguiu ficar sozinha, por causa do tamanho da nossa família. E o meu pai também sempre foi uma figura muito presente na minha vida, de brincar, ainda mais que eu sou filha única. Ele cresceu com muitos sobrinhos, muitos irmãos e aí veio todo esse amor pra mim, concentrado, então a gente teve uma relação muito boa.

(04:14) P/1 - Quando você era criança, você brincou muito com seus primos, já que a família é grande, né? Você teve muito contato com a sua família na sua infância?

R - Sim, na minha infância eu tive muito, tanto do lado materno, quanto do lado paterno. Do lado materno, até por ter menos pessoas, então ficamos mais unidos ainda, mas do lado paterno sempre teve aquelas afinidades, aqueles encontros de final de ano, Natal, Ano Novo… Principalmente Ano Novo, a gente fazia todo ano, então o máximo de pessoas que podiam ir iam para lá, e nossa! Amava brincar com eles. A gente sempre inventava muitas brincadeiras, sempre tinha gente para brincar, a gente interagia um com o outro, então sempre foi muito divertido.

(05:03) P/1 - Seus pais te contaram como eles se conheceram?

R - Sim, eles se conheceram… O meu pai toca, sempre tocou em grupos de samba. A minha mãe foi com os amigos dela assistir e acabou que eles se conheceram ali. Eles tinham amigos em comum, nem sabiam que tinham amigos em comum. Eles se conheceram, ficaram no primeiro dia, e depois eles ficaram dois anos sem se ver. Voltaram no mesmo dia para o mesmo lugar e se encontraram de novo, dali para frente eles firmaram e não se separaram mais.

(05:45) P/1 - E falando um pouquinho mais sobre a sua infância, você tem alguma história inesquecível, que você se lembra da sua infância até hoje, que te marcou?

R - Algo que me marcou muito na minha infância foi a presença da minha avó paterna. Ela sempre foi uma referência de mulher para mim. Eu sempre me lembro de ser bem pequena e ela já me dar conselhos para a vida, sabe? Ela sempre falava pra gente andar arrumada, pra gente estudar. Ela sempre me incentivava muito com a questão do estudo, porque ela não pôde terminar os estudos dela; ela casou cedo, começou a trabalhar cedo e o sonho dela era ser professora, então ela sempre falava pra mim pra não desistir. As minhas maiores lembranças de infância são de ir na casa dela e ela falar: "Tem que arrumar o cabelo, tem que arrumar a roupa, tem que ficar bonita. Você tem que falar desse jeito, tem que andar desse jeito e assim você vai conseguir".
Acabou que, querendo ou não, eu fui usando isso, e hoje quando ela me vê, ela fala: "Eu gosto de você assim, ainda bem que você seguiu os meus conselhos".

(07:02) P/1 - E você se lembra da casa onde você passou a sua infância?

R - Eu me lembro, eu passei a minha infância em uma casa que é perto de onde eu moro agora. Era uma casa onde moravam eu, minha mãe e o meu pai. Era bem simples e pequena, tinha quarto, cozinha, não tinha uma sala própria, então era aquele espaço onde tinha um pequeno sofá e uma televisão, dividido com a cozinha, e banheiro. Mas eu lembro bastante do quintal, que era um quintal grande, então dava para brincar de bicicleta, a gente tinha um cachorro e acabava sendo um espaço bem acolhedor. Tinha uma outra família que morava lá também, que são uns parentes nossos, que moravam na parte de cima. Eu lembro que às vezes tinha umas festas conjuntas, as pessoas ficavam no quintal brincando, conversando. Eu lembro de uma maneira bem acolhedora.

(08:05) P/1 - Você tinha um sonho de infância? Algo que você quisesse ser quando você crescesse?

R - Quando eu era criança eu queria ser muita coisa, eu mudava toda semana. Minha mãe sempre fala até hoje que eu inventava, então eu queria ser… Eu sempre quis ser professora, mas depois eu falava que eu queria ser veterinária, depois eu falava que eu queria ser médica, enfermeira, aí eu falava que eu queria fazer alguma coisa, talvez, muito diferente, alguma coisa que eu pudesse mudar o mundo, mas eu nem sabia como expressar extremamente o que eu queria, né? Eu sabia que eu queria fazer a diferença de alguma forma. Aí depois eu queria escrever, então eu passei por várias áreas, todas as áreas possíveis. Até ser arquiteta, fazer Ciências Contábeis; eu fui assim, para todas as áreas possíveis e imagináveis, eu cogitava que eu queria estar.

(09:04) P/1 - E tinha alguma comida sua preferida, que você gosta até hoje?

R - Acho que a minha comida preferida da infância, que é algo que eu ainda gosto bastante, é carne moída com batata, cenoura e molho. Eu amo demais, amava demais quando era criança, sempre pedia para minha mãe fazer e hoje ainda continuo pedindo.

(09:27) P/1 - A gente vai passar um pouquinho para sua vida escolar, tá? Quais são as primeiras lembranças que você tem de ir para a escola?

R - Pra mim, ir para a escola sempre foi um momento engraçado e de conflito, então eu lembro que quando eu era bem pequena, nas primeiras vezes, eu sempre chorava muito para ir, porque eu não queria ir. Queria ficar em casa, brincando, ficar com a minha mãe, não queria ficar com aquelas pessoas desconhecidas. Eu lembro que a primeira semana foi uma semana que eu chorava muito e na segunda semana já era para eu estar mais adaptada, aí eu comecei a falar pra minha mãe que “não, estou super adaptada, não choro mais”, sendo que ainda chorava todos os dias.
Eu demorei um tempo pra gostar de ir para escola, de conhecer as pessoas, mais depois foi melhorando.

(10:22) P/1 - E essa escola, essa primeira escola que você frequentou, era perto de casa? Você ia a pé? Ou a sua mãe te levava de ônibus ou carro? Como era?

R - A primeira escola era perto de casa, a gente até brinca que quando eu estudava no prezinho, ele ficava mais perto da casa que eu moro agora, e quando eu fui para a primeira série, ficava mais perto da casa que eu morava antes, então acabou sempre sendo contrária, mas sempre fui a pé pra escola. Só fui começar a ir de perua mais adolescente, mas a gente ia a pé debaixo de chuva, debaixo de sol, mas era até que perto, então não tinha muito problema.

(11:08) P/1 - E nesse primeiro momento do seu ensino fundamental, teve um professor ou alguma matéria que te marcou? Que você gostava mais?
R - Eu acho que a professora que mais me marcou nessa primeira etapa foi a minha professora da primeira e da segunda série, então do Fundamental I ainda, que se chama Marines. É uma pessoa que está presente na minha vida até hoje, e muito do que eu aprendi sobre disciplina, sobre como aprender, sobre como conviver com outras pessoas, veio dela. Ela era uma professora bem rigorosa, muita gente não gostava dela porque ela era bem rígida com a gente, mas não tem como, o que eu aprendi desde montar a minha mesa, até como pintar, escrever, como me expressar veio dela, então ela é a pessoa que mais me marcou.

(12:03) P/1 - Certo. E você, já fora da sala de aula, tinha algum evento da escola que você gostava de participar? Alguma lembrança que você tenha disso?

R - Eu sempre gostei muito de participar de sarau. A escola às vezes fazia ou levava a gente para ver de outras escolas. Sempre foi um momento para mim muito divertido, então tinha poesia, tinha música. Era um momento que eu gostava bastante de estar ali. Tudo que envolvia arte sempre me chamou muita atenção, então eu gostava bastante.

(12:47) P/1 - E em casa vocês gostavam de assistir TV, de ouvir rádio, ou jogar jogos, videogames? O que você gostava de fazer em casa quando você era criança?

R - Eu sempre gostei muito de assistir televisão, assistir desenho, animações, sempre foram as minhas coisas favoritas de assistir. Eu gostava daquele ritual de chegar da escola, sentar, botar o meu desenho favorito para almoçar. Eu tenho bastante lembrança disso. A gente também gostava bastante de jogar aqui em casa, então, seja com a minha mãe, meu pai, com primos, jogar vôlei, futebol… Depois, conforme eu fui crescendo, jogar jogos de carta, tabuleiro, então eu sempre gostava de estar me divertindo em casa.

(13:41) P/1 - E a sua infância no bairro? Você brincava na rua? Você frequentava algum outro local no bairro perto de casa?

R - Eu brincava muito na rua na minha infância, cresci com pessoas da minha idade. Aqui na minha rua sempre tem pessoas crescendo juntas. Minha mãe cresceu aqui, ela e as amigas dela tiveram filhos mais ou menos da mesma faixa etária, então esses filhos cresceram juntos. A gente ia uma na casa da outra para brincar, para pintar, ou brincava na rua. A gente brincava muito de patins, bicicleta, dava voltas no bairro, sempre perto. Mas nossas mães deixavam a gente livre para ir, e era sempre muito tranquilo. Aqui não é um local que passava muito carro, então a gente tinha bastante espaço para aproveitar.

(14:40) P/1 - E avançando um pouquinho na sua vida escolar, como foi o seu ensino médio? Você chegou a mudar de escola? Na adolescência os gostos vão se modificando, outras atividades vão surgindo. Conta um pouquinho pra gente desse período da sua vida.

R - No ensino médio eu tive que mudar de escola, porque a escola onde eu estudava só ia até a oitava série, o atual nono ano, mas era a mesma rede de ensino, então várias pessoas foram também para essa nova escola. Era uma escola bem diferente, porque era uma escola bem maior, com outras pessoas, muito mais professores, porque no ensino médio tem mais matérias. Foi aí que eu descobri que eu gostava de várias outras coisas, Filosofia, Sociologia, que eu ainda não tinha tido muito contato, ver a literatura de outra forma… Comecei a ler livros diferentes, aí que eu também peguei gosto por ler, e foi um período… Como no pré, eu tive que passar de novo por um período de adaptação nessa nova escola, porque no começo eu não tinha gostado muito, não tinha me adaptado muito. Achava muito complicado, era o primeiro momento que eu estava indo sozinha, pegar ônibus para ir sozinha para a escola e tudo mais. Mas no final deu certo.

(16:11) P/1 - E nesse período o que você gostava de fazer fora da escola? A quais atividades você gostava de se dedicar? Para quais lugares você gostava de ir?

R - Eu gostava muito de ler, então era um período que eu chegava… Eu lia muito, vários livros. Toda semana, todo tempo livre que eu tinha, eu queria ler e ver séries, então eu comecei a escolher melhor as séries que eu gostava, entender melhor os meus gostos. Eu gostava de fantasia, eu gostava de romance, então foi o memento que eu consumia muito, para depois conversar com as minhas amigas sobre os assuntos.

(16:54) P/1 - E tem algum momento marcante que você se lembre da adolescência até hoje?

R - Eu acho que na minha adolescência tiveram vários momentos marcantes, positivos e negativos, mas eu lembro de um que foi o momento de ponto de virada para quem eu me tornei ao longo dos anos. Foi uma festa da escola, de final de ano, que a gente fez amigo secreto. No meio desse amigo secreto tinham presentes positivos e negativos, e um dos meus presentes… Eu ganhei coisas boas, então ganhei barra de chocolate, ganhei CD, mas também ganhei um pedaço de bombril e a pessoa falou que era por causa do meu cabelo ser crespo. Naquele momento eu nem entendia direito todas as nuances que tinham nessa fala, né, tinha nesse momento, mas ao mesmo tempo foi em um período onde estava começando a se discutir mais sobre as texturas de cabelo, sobre manter o cabelo natural, não manter o cabelo alisado, e acabou calhando de ser nesse momento que eu peguei e fiz: “Ah, então tá bom, eu acho que as pessoas veem meu cabelo com essa textura, eu quero saber a textura do meu cabelo.” E dali uma coisa que era para ser negativa, uma crítica, uma coisa assim, eu consegui virar aquilo e se tornou uma coisa positiva para mim, porque eu fiz [algo do] tipo: “Não, eu vou me conhecer pra entender. Eu vou entender por que a pessoa fez isso, por que a pessoa falou isso, por que me associou a isso.”
Foi um momento que me marcou muito. Eu acho que é o momento que eu lembro com mais clareza de viver na escola, na adolescência, mas que ao invés de ser um momento que ficou só na tristeza, eu consegui trazer algo bom daquilo.

(18:58) P/1 - Certo. E nesse período do ensino médio, você já pensava que você queria fazer Letras?
R - Durante o ensino médio eu fiquei bastante em dúvida, porque eu fazia técnico em Logística. Eu pensei por algum tempo em fazer Relações Internacionais, Comércio Exterior, mas no terceiro ano, quando já estava em um momento mais decisivo, conversei com a minha professora de Português e ela falou para mim: “Não, você gosta muito de ler, você gosta de escrever, você se comunica muito bem. Você sabe que tem mais afinidade com isso, então por que não ir lá e fazer o que você gosta, sabe?” Então eu arrisquei e fui.

(19:43) P/1 - E me conta um pouco como você se sentiu nesse processo do vestibular, se ser aprovada, de começar a estudar. Como é que foi isso para você?

R - Eu fiz o vestibular pela primeira vez no terceiro ano do ensino médio. Foi a primeira vez que eu fiz o ENEM e foi assim, eu não sabia muito o que esperar, eu não sabia muito bem o que estudar. Ainda estava estudando pra terminar a escola, então foi um primeiro ano muito ruim. [Pensei:] “Eu preciso me concentrar, estudar só pra isso”, porque eu sabia que eu queria estudar numa faculdade federal. Então, no ano seguinte eu não fui trabalhar nem nada, me dediquei inteiramente pra estudar.
Foi um privilégio muito grande poder ter tido tanto tempo assim pra me dedicar. Eu tive que aprender a estudar sozinha em casa, por que eu fiz cursinho on-line e precisava ter uma disciplina, precisava ter as minhas próprias regras; precisava entender como eu estudava mesmo, qual seria o método que funcionava comigo. O ano foi assim, cheio de altos e baixos; tinha aquele período que estudava muito e dava muito certo, e tinha aqueles períodos que não queria estudar nada, que já queria desistir e aí tinha que voltar: “Ah, não! Eu tenho objetivo, vou conseguir, preciso pelo menos tentar.”
Chegou no final do ano, eu fiz, e depois, no início do ano seguinte, eu descobri que tinha passado na faculdade federal de São Paulo. Então, quando teve esse momento de de fato passar, foi um alívio muito grande, ver que tinha dado certa toda aquela caminhada.

(21:27) P/1 - E como foi pra você a entrada na faculdade? Tudo completamente diferente, local diferente, matérias diferentes, grau de exigência diferente. Como você sentiu esse primeiro impacto, começando a fazer faculdade?

R - No início da faculdade eu já tive um choque muito grande. No primeiro dia foi o dia que fui fazer a matrícula e eu vi pessoas muito diferentes umas das outras; eu estava tão acostumada no ensino médio com aquele grupo de pessoas, e nas escolas que eu estudei era sempre eu e mais dois ou três na sala que éramos negros, então eu nunca vi tanta diversidade. E no dia da matrícula, eu lembro muito que eu olhava e falava: “Meu Deus! Essa faculdade vai abrir a minha cabeça, porque eu vou conhecer pessoas que são iguais a mim, pessoas que são diferentes, com outros interesses, de interesses parecidos”.
Eu fiquei muito feliz de no primeiro momento já me deparar com isso, me senti muito acolhida. As pessoas que fizeram a recepção explicaram muito bem como seria. Mas também foi um choque o primeiro semestre, a quantidade de leituras, ainda mais sendo Letras, então [havia] muitos conceitos que eu nunca tinha visto na escola, muitos conceitos que eu nem tinha parado pra discutir, que já estavam lá e os professores falavam da importância de entender naquele momento pra conseguir acompanhar o restante. Foi um momento ao mesmo tempo de muita felicidade e de muita tensão, de [pensar]: “Ai, será que eu vou dar conta? Será que é isso mesmo?” Ver que a literatura da faculdade não era a mesma literatura da escola, então [foi o momento de] quebrar muita expectativa também.

(23:22) P/1 - E durante o período que você estava estudando, no início, você já começou a pensar em atividades profissionais, ou você deixou isso para um pouco depois? Como é que foi?

R - Eu comecei a pensar mais nesse trabalho no segundo semestre da faculdade, porque na faculdade tinha vários projetos em que você poderia já começar a entender mais o que você queria para a sua carreira. Um desses projetos foi o Memoref, o Memorial Digital do Refugiado, que tem até hoje, é ensino de português para estrangeiros e refugiados. No segundo semestre vieram falar sobre esse projeto nas salas. Eu me interessei, a coordenadora do projeto era uma das alunas que eu já tinha um pouco de contato. Conversei com ela se podia tentar, a gente ia entrar como monitor nesse projeto, fazer a ponte entre os alunos e os professores, e aí eu consegui, então [foi] no início do… No finalzinho do primeiro ano da faculdade, mas no início do segundo ano da faculdade eu já estava ali, vendo como era uma sala de aula, mesmo que não em uma figura de professora, ainda na figura de monitora. Mas vi como era uma sala de aula em um contexto diferente, que era português como segunda língua, então tendo alunos que falavam línguas diferentes - inglês, francês, espanhol, e com dificuldades diferentes. A maioria era de adultos, já, então com várias questões que já pude… Entender e ir colocando mais no meu profissional.

(25:14) P/1 - E você passou quanto tempo, trabalhando com esse projeto? Como monitora?

R - Eu passei três anos trabalhando nesse projeto. Comecei como monitora, depois eu fiquei como professora mesmo, então assumi algumas turmas.

(25:33) P/1 - E como foi essa experiência pra você?

R - Foi uma experiência bem enriquecedora, porque ter que lidar com pessoas que não falam o seu idioma e ensinar o seu idioma, e ao mesmo tempo lidar com muitas culturas diferentes na mesma turma, era algo que eu não esperava. Quando eu entrei lá em Letras era uma experiência que eu nem imaginava que poderia ter, mas foi muito enriquecedor, porque eu aprendi muito sobre vários países diferentes. Tive o privilégio de ter alunos da Bolívia, do Egito, do Combo, do Haiti, da Angola e cada um trazia alguma questão diferente sobre si, sobre o seu país, sobre o por que de estar aqui no Brasil, o que esperava, até onde a gente podia ajudar. A gente deu muito a questão sobre emprego, sobre o mercado de trabalho em si, a aceitação. Às vezes precisava de ajuda com documentação por que não conseguiam preencher, então além do ensinar o português a gente acabava aprendendo muito a ensinar de uma maneira mais humanizada. Não era só chegar lá, passar o conteúdo e esperar que eles fossem entender; a gente tinha que ter um olhar muito humanizado pra eles, entender as dificuldades, entender os momentos. Tinha momentos muitos difíceis, momentos como conflitos, por exemplo, nos países deles ou momentos que eles sabiam que a família não poderia chegar naquele momento [no Brasil], então eram várias questões ali. Mas foi bem importante pra amadurecer como pessoa e profissionalmente.

(27:23) P/1 - E você foi a primeira pessoa da sua família que fez faculdade? Ou não?

R - Não, não fui a primeira pessoa que fez faculdade, mas eu fui a primeira pessoa da minha família a fazer uma faculdade pública.

(27:37) P/1 - Certo, o que isso significou para a sua família? Qual foi o impacto, os comentários, como essa notícia foi recebida pela a sua família? Conta um pouquinho como foi isso.

R - Quando descobriram que eu tinha decidido que iria para faculdade pública ou não iria pra faculdade nenhuma, a minha família apoiou muito, mas eles ficavam meio… “Nossa, dia de festa e você tá estudando, a gente vai sair e você vai ficar aí, estudando.” E eu falava: “Não, vou ficar estudando, porque vai valer a pena”. Mas no dia que eu passei foi uma festa total, todo mundo ficou muito feliz porque sabia da importância disso, porque pagar a faculdade sempre foi algo com muito sacrifício. Eu vi as minhas primas que trabalhavam e estudavam e às vezes não estavam na faculdade que queriam, precisavam tirar o dinheiro dali, daqui pra conseguir pagar as contas e tudo mais. Então estar numa faculdade onde eu não precisava pagar, que eu teria uma boa educação, que tem destaque no meu curso, que o curso tem uma visão que eu gosto, que eu me identificava, significou muito pra todo mundo. Ter alcançado esse objetivo, ter conseguido chegar lá, ter conseguido me formar, pra eles foi uma felicidade.

(29:05) P/1 - Certo. Depois desses três anos que você ficou nesse projeto, qual foi o seu próximo passo?

R - Depois do Memoref, eu decidi trabalhar um pouquinho mais com questões humanitárias, então fui trabalhar como professora de redação e português para vestibulinho num cursinho popular. Também foi uma experiência muito interessante, porque desde a ficha de matrícula tinha alunos às cinco da manhã esperando e só ia começar a soltar as vagas às dez horas da manhã. [Eram] pessoas que queriam mesmo, que estavam dedicadas, estavam precisando. Também [eram] alunos de idades diferentes. Eu só tinha trabalhado com alunos que já eram adultos, que já tinham mais de trinta anos, e ali eu estava trabalhando com adolescentes e com pré-adolescentes.
Depois disso eu já fui trabalhar um pouco mais com redação, então [trabalhei com] correção de redação para uma plataforma on-line. Foi outra experiência diferente, saiu um pouco da sala de aula pra ir para trás do computador, mas ainda trabalhando a temática e a escrita, até que eu cheguei agora a trabalhar com redes sociais.

(30:32) P/1 - Falando um pouco sobre essa questão de preconceito no ambiente de trabalho, como você vê as oportunidades de trabalho e de crescimento profissional para a população negra no Brasil?

R - O mercado de trabalho para pessoas negras no Brasil ainda é algo que na teoria tá andando, mas na prática às vezes a gente não vê tanto. A gente vê muita propaganda na televisão, muitas empresas falando que são inclusivas, que querem fazer a diferença, que querem mais a presença negra, mas quando passa nos processos seletivos, quando tá lá a foto de final de ano, dá pra contar nos dedos quantas pessoas negras ainda tem. Então, é um preconceito que eu vejo que ainda está muito enraizado.
Às vezes a gente escuta alguns conselhos como: “Não coloca foto no currículo, porque tem a chance de a pessoa descartar só de ver a sua foto, só de bater o olho e achar que você é inferior mesmo, que você não tem capacidade, sem nem ver as suas habilidades técnicas, suas habilidades de comunicação”. Então eu acho que a gente ainda fica muito no discurso.
No discurso tem avanços, acho que todo mundo reconhece que não tem como você ter uma empresa sem ter inclusão nessa empresa. As empresas falam sobre isso, mas na hora de colocar na prática ainda tem muita coisa que vão deixando, não vão observando e quando vê tá na mesmice.

(32:11) P/1 - E você pessoalmente, você já passou por alguma situação dessa de preconceito racial no trabalho? Em alguma atividade profissional sua?

R - Eu não passei diretamente por nenhuma situação assim, mas eu tive alunos… O projeto em si, no Memoref… Os alunos estudavam lá na faculdade e houve um momento que tinha pichações, falando principalmente dos alunos africanos, que eram negros. Tinha pichações nos muros falando que não queriam aqueles alunos ali, que era pra eles voltarem de onde eles vieram e tudo mais, então a gente acabou sentindo junto com eles - eu, principalmente, por entender o que aquelas pessoas queriam dizer. E muitos deles falaram que era a primeira vez que eles estavam passando por preconceito, então às vezes o preconceito não vem direto de um chefe ou de alguma coisa assim, de quem está lá em cima, mas de quem está ao redor também.

(33:13) P/1 - Eu queria que você falasse um pouco sobre esse seu trabalho com redes sociais, falando sobre literatura, sobre filmes, sobre séries e também sobre a sexualidade. Queria que você contasse como isso aconteceu, de onde veio a ideia.

R - O meu trabalho com redes sociais começou mesmo em 2020, no início de 2020. Desde 2019 eu estava fazendo terapia e a minha psicóloga sempre falou para mim: “Você tem que expor o que você pensa. Você gosta muito dessa questão de comunicação, você gosta muito de falar sobre livros, filmes e séries, você lê muito, então por que não dividir isso com as outras pessoas?”
Eu fiquei com isso na cabeça, enrolei bastante até de fato firmar um projeto. No início de 2020, até com toda a questão da pandemia, de ficar em casa, aquela incerteza de como ia ficar a faculdade e tudo mais, eu fiz: “Bom, agora vou então tentar. Vou pegar firme, vou fazer.” Comecei falando primeiro dos livros que eu estava lendo, que eu gostava, depois eu fui assistindo algumas séries também, filmes e vi que as pessoas gostavam bastante quando eu indicava livros e filmes que tinham protagonistas negros, que às vezes não é tão fácil de achar na livraria, não está tão estampado ou nos streamings, que têm muitas opções, então [você] vai naquelas que todo mundo assiste primeiro e às vezes tem muita coisa legal que a gente não está consumindo. Comecei a procurar mais ativamente, pra poder indicar.
Depois, com o passar do tempo, eu quis começar a falar bastante sobre a escrita, porque a escrita é algo que sempre esteve na minha vida. A criação dos personagens, como eu imaginava as histórias… Encontrei muitos escritores. De 2020 pra cá o mercado literário acabou crescendo muito em questão do mercado independente; apesar de muitas livrarias físicas estarem fechando, o mercado independente, de gente que está publicando seus próprios livros, seja em e-book ou livro físico mesmo, cresceu bastante. A gente acabou criando uma grande comunidade nas redes sociais e isso acabou me incentivando a falar mais.
Foi assim que eu comecei a falar também sobre a sexualidade, que era algo que eu colocava nos meus personagens, mas eu via que muita gente ainda não entendia. As primeiras postagens mais explicativas acabaram causando bastante identificação, então muita gente chegava e falava: “Ai, agora eu me entendo. Eu entendo que não preciso me sentir obrigado a fazer nada, eu não preciso”. A gente consome muitos livros, filmes e séries que são aquele padrão de adolescente, que tem que beijar, tem que ter a primeira vez, tem que fazer isso, tem que fazer aquilo. [Tem] que mostrar que a gente não tem obrigação de nada, né? Então eu vi que as pessoas gostaram e continuei produzindo até hoje.

(36:33) P/1 - E você também tem publicado histórias? Conta um pouco também sobre essa sua atuação.

R - Eu também publico histórias. A primeira história que eu publiquei foi um conto, em uma antologia de uma pequena editora, que é Se Liga Editorial. Eles tinham a proposta de fazer uma coletânea de contos em que todos os protagonistas tivessem alguma deficiência, então o meu conto se chama Fora da Caixinha e é sobre uma protagonista que é surda. E daí em diante eu fui escrevendo várias histórias. O e-book é um livro de contos que se chama Vulnerável, que fala bastante sobre a vulnerabilidade da mulher negra; é muito baseado na minha experiência, na experiência de amigas minhas ou de leituras que eu fiz na… De relatos na internet. Também escrevi um conto chamado Entre Nós, para a Se Liga Editorial eu também escrevi Heloísa, que é uma adaptação do musical de Hamilton, para um projeto que eles fizeram de adaptação de musicais. Estou sempre escrevendo alguma coisa, principalmente contos, que é o que eu mais gosto, é o que mais eu tenho publicado.

(37:52) P/1 - Você comentou agora que você escreve bastante a partir das suas experiências. Você já teve alguma… Você já chegou a perder contato com pessoas por conta da sua diversidade? Como mulher, negra ou como assexual? Das pessoas falarem, se afastarem por não entender?

R - Eu já tive muitas experiências, até, das pessoas se afastarem por conta disso. Acho que já começando na escola, na saída da escola, o período que você está entrando na vida adulta e você vai entendendo coisas, você vai percebendo que as coisas são mais sérias do que você pensava. Então [tinha] pessoas com discursos que não iam de encontro ao que eu acreditava, ou não iam de encontro com quem eu sou; às vezes pessoas que faziam piadas, ou achavam que tudo era brincadeira e [aquilo] já não se encaixava mais com quem eu era, então acabava entrando em conflito com essas pessoas. E também na relação de ser assexual, a gente sabe que o corpo preto é muito visto como um corpo sexualizado; quando você demonstra que você tem uma barreira, às vezes as pessoas já falam: “Ah, não é isso que eu quero, eu estava esperando uma coisa…” Mas aí é outra, então acaba tendo esse embate, principalmente em relacionamentos amorosos. As pessoas, às vezes, já vêm com uma expectativa, e quando você fala: “Não, olha, para mim esse tipo de relação é uma outra coisa”, acaba sendo uma barreira.

(39:39) P/1 - No seu trabalho, nas redes sociais, você tem a liberdade de falar sobre todas essas questões - sobre o corpo negro, sobre protagonistas negros, sobre assexualidade. Em outros locais, em outros trabalhos que você teve, você teve a liberdade de ser você mesma, sem ter esse tipo de preocupação?

R - Nos ambientes de trabalho acho que fica um pouco diferente da internet, porque eu sinto que na internet você coloca a sua opinião, coloca quem você é e as pessoas vão chegando, seja pela proximidade, ou até aquelas pessoas que vão rebater, falar que não é isso, que é isso ou aquilo, mas eu sinto que é um ambiente um pouco mais seguro, ainda, para se colocar. Eu sinto que nos ambientes de trabalho mais formais ainda tem um pouco de trave, de entender até onde você pode ir com as pessoas, até onde as pessoas querem conversar aqueles assuntos, querem saber, então acho que demora até um pouco mais. Você vai ter que criar ali o seu espaço seguro dentro daquele espaço para conseguir se abrir. Acho que ainda são ambientes que causam muita trave. Na internet, às vezes a gente tem essa trava, mas vai se soltando mais rápido ou você nem passa por essa trave, você só vai lá, fala e acha as pessoas, acha seu grupo. A partir daí, vai ficando cada vez mais confortável.

(41:21) P/1 - Falando em espaço seguro, Dayane, quem é a sua rede de apoio?

R - Hoje em dia eu vejo que a minha rede de apoio é muito minha família. Eu venho de uma família que sempre conversa muito sobre essas questões. Nem todo mundo, por exemplo, vê essas questões raciais, nem todo mundo consegue enxergar da mesma forma, na mesma intensidade, ou discute da mesma forma, na mesma intensidade, mas sempre foi um espaço muito acolhedor, onde a gente pode… Eu sempre falo, a minha avó paterna, por exemplo, ela nunca parou para ler livro sobre racismo ou ver uma palestra, ver alguma coisa assim, mas todo o discurso dela sempre foi muito de encontro com o que eu encontro nesses livros, nessas palestras, então acaba trazendo a aquela segurança, aquela proximidade para poder conversar, poder entender e trocar vivências. Acho que a família sempre é a minha maior rede de apoio.

(42:29) P/1 - Em relação ao mercado de trabalho, queria que você comentasse como você entende a importância da diversidade no mercado de trabalho e o que você acha que falta para que isso seja algo mais comum, algo mais normalizado. Conte um pouco o que acha disso.

R - Eu vejo que é de extrema importância a gente ter profissionais diversos no mercado de trabalho e de todo o tipo de diversidade possível, porque acho que muitos problemas que a gente tem às vezes é por não ter de fato essa diversidade. Falando um pouquinho sobre o mundo dos livros, às vezes passa uma frase, às vezes passa a palavra, às vezes passa o próprio livro que todo mundo acha que "ah, tá ok". Uma grande editora, por exemplo, vai passando nos processos, ninguém vê o problema e só quando chega lá no consumidor final, quando chega no leitor, os leitores falam: "Olha, já dava para ter poupado a gente de chegar nesse material final, se tivesse pessoas envolvidas". Então eu acho que é de extrema importância.
A gente vê muitas pessoas competentes, a gente vê isso na arte… Então é cinema, novela, aí você pensa, "Nossa, o ator tal podia estar ali". E a gente sabe que não está ali porque não está escrito que o personagem é negro, que o personagem é asiático, que o personagem tem origem x/y, mas a gente sabe que em outros contextos não precisa ter lá toda a especificação para colocar outros tipos de atores, por exemplo. Se a gente não consegue ver isso na arte, a gente não vê isso nas grandes empresas, corporações e tudo mais, vai fazendo falta. Vai criando também nas gerações a impressão de que chegar lá está muito longe, então às vezes vai desanimando, a pessoa que não quer fazer um processo seletivo porque sabe que vai ser traumático; sabe que vai ter competência, mas pode ter outros impedimentos.
Até para criar um espaço de diálogo, um espaço de verdadeiro diálogo, não só ali nas propagandas, é importante que tenha essa diversidade. Eu acho que falta muito tirar os projetos do papel, a fala do sonho e botar ali na realidade. A gente já vê hoje os nossos empregos com vagas afirmativas e talvez esse seja um primeiro bom passo de entrada, para saber que tem ali um espaço seguro. Tem empresas também que já têm um setor ali que pensa mais na diversidade, que vai olhar com outros olhos, então a gente precisa dessas pessoas dentro também, para olhar o processo seletivo, para olhar no dia a dia, para também não botar a pessoa ali no meio e "se vira". Tem que sobreviver do mesmo jeito que a gente sobrevive no dia a dia, então eu acho que é muito importante parar e pensar nos motivos. "É, eu posso ter uma empresa que seja 100% igual, assim, com pessoas iguais." Mas por que são aquelas pessoas que estão ali? Quais são os diferenciais? O que está faltando? E ter esse olhar mais crítico.

(46:15) P/1 - E o que você acha que a sua experiência pode contribuir para pessoas que vivem a mesma situação que você? Em vários aspectos?

R - Eu acho que a minha experiência contribui bastante no sentido da conversa, então sempre abri espaços, aproveito espaços. Em todos os espaços que eu vou, que eu posso falar, que eu posso enaltecer, que eu posso chamar, que eu posso fazer um alerta, eu busco fazer isso, porque a gente ainda precisa muito criar o senso de comunidade. Às vezes falta um pouco, a gente vê aquele pessoa de destaque que chegou naquele lugar que a gente queria e a pessoa está ali sozinha - aquela síndrome que a gente chama de ‘síndrome do negro único’, que é um único negro representando todos. Eu sempre quero que a minha experiência, que os meus pensamentos, as minhas falas vão no sentido contrário, de somar e não só botar ali uma pessoa de destaque e já está tudo certo. E também é muito na questão da perseverança, porque é uma luta todo dia, né? Mexer nas estruturas não é rápido, não é fácil, não é do dia pra noite, mas se a gente puder mexer um pouquinho todo dia em algum lugar que seja, para a outra pessoa poder mexer também e assim a gente começar uma rede, já ajuda bastante.

(47:51) P/1 - E você estava comentando há pouco tempo atrás a respeito de ter começado a fazer esses seus trabalhos com as redes sociais, logo no início da pandemia. Queria que você comentasse um pouco como está sendo - na verdade, ainda não acabou - esse período de pandemia? Se você teve muito impacto na sua saúde mental, nas pessoas à sua volta. Comenta um pouquinho pra gente como isso está sendo pra você.

R - O período de pandemia foi um período de mudanças muito radicais. Agora eu trabalho 100% em casa, então teve aquela mudança profissional que já vai mexendo com a cabeça. Estava acostumada a sair, a ver muitas pessoas, conversar, aquele ambiente de escritório, daí tira isso. Passei muito tempo dando aula também, então dar aula on-line e não dar aula presencial, assistir aula on-line e não assistir aula presencial foram coisas que mudaram muito. Eu senti que teve bastante impacto também, porque no começo ficou todo mundo muito assustado. Meu pai, por exemplo, que é diabético, até hoje tem que ter um cuidado maior; uma preocupação maior com a minha avó, com a minha bisavó. Ficou muita incerteza, e as consequências disso.
Hoje a gente vê que está numa situação muito difícil, vendo as coisas cada vez mais caras, às vezes coisas que você precisa. Às vezes você precisa de um computador melhor, uma internet melhor, porque agora você está trabalhando nesse contexto e você fica: “Meu Deus! Como eu vou pagar? Como vou conseguir?” É muita gente sendo demitida, com grandes impactos financeiros, grandes impactos também nos estudos. “Como continuar a faculdade? Não consigo acompanhar a faculdade online”. Então eu senti, eu sinto ainda que é um período bem caótico e toda vez que a gente pensa “agora as coisas estão se ajeitando” parece que mexe um pouco mais. É um período que a gente não pode se descuidar, então às vezes a gente acha que está tudo muito tranquilo, tudo muito bom, vou voltar para vida normal, e essa falsa sensação de normalidade às vezes acaba atrapalhando mais do que ajudando. Então foi, e está sendo ainda, um período de muitas mudanças.

(50:35) P/1 - A gente vai para as perguntas finais Dayane, elas são um pouco mais pessoais, tá? A primeira é: quais as coisas mais importantes para você hoje em dia?

R - Hoje em dia as coisas mais importantes pra mim são me comunicar com os grupos que eu faço parte. Esse senso de comunidade que veio desde o início do trabalho com as redes sociais me ensinou muita coisa. Tem sempre alguém precisando de alguém, sempre alguém precisando ser escutado, alguém precisando que alguém escute, que alguém fale, algumas trocas assim. Essas trocas interpessoais também são muito importantes. E também família, a minha família sempre foi muito minha base, então vejo que passar também o que eles passam pra mim para outras pessoas é algo que me preenche muito.

(51:39) P/1 - E quais são seus sonhos para o futuro, Dayane?

R - Eu acho que os meus maiores sonhos pro futuro são ver mudanças significativas. Sempre falo que quero muito entrar numa livraria, dentro do que eu gosto, do que eu trabalho, e ver muitas mulheres e homens negros com os seus livros. Que um dia talvez o meu também esteja ali no meio, mostrar um crescimento que de fato se concretize. Eu quero que esses crescimentos profissionais, pessoais, não sejam só na minha cabeça, quero que eles estejam refletidos principalmente na atuação com a comunicação. Os livros, pra mim, seriam a melhor forma de fazer isso.

(52:39) P/1 - E qual você acha que é o legado que você está deixando? Com as coisas que você faz, a influência sobre as pessoas, a mensagem que você deixa para elas?

R - Eu acho que a principal mensagem que eu estou deixando é para as pessoas entenderem que, apesar de ser difícil, a gente tem que tentar e tem que botar a cara a tapa. E na medida do possível, na medida do que a gente consiga fazer. Acho que isso vem muito pela minha experiência… Que a minha experiência sempre… Todas as minhas experiências profissionais e com criação de conteúdo foram jogadas assim, então não tem o negócio de “vou largar o que eu faço”. Eu tento dar o meu melhor, tento passar muito isso. É também uma questão de respeitar os nossos limites, respeitar quem nós somos, principalmente, e a gente não se perder no meio do caminho. Sempre estou tentando resgatar quem eu sou, de onde eu vim, seja no familiar ou pensando na ancestralidade também. Acho que essa é a principal mensagem que eu sempre tento deixar.

(53:54) P/1 - E tem algo que a gente não comentou durante essa conversa que você gostaria de comentar?

R - Eu acho que uma coisa importante da gente sempre comentar… Eu falo um pouquinho sobre essa questão de que precisamos pensar como comunidade, mas às vezes não pensar que a gente precisa ter esse senso de comunidade restrito nos grupos. Pensando na comunidade assexual, pensando na comunidade negra, pensando na comunidade LGBTQI+, mas pensar também que precisamos do senso de comunidade estendida. A gente precisa que outras que já estejam nos espaços, que já estejam no mercado, que já estejam produzindo, falando, também olhem pra gente com esse olhar, então não deixar aquela coisa tão mixa, porque não é isso que a gente precisa. A gente não tem que esperar alguém dar uma portinha para uma pessoa negra no mercado de trabalho pra ver se essa pessoa consegue puxar outras. Não, se tem alguém que pode mudar, que tente fazer isso, sabe, sem precisar de representação, que alguém represente o grupo inteiro, porque assim a gente consegue abrir mais espaços, abrir mais discussão e mudar o nosso olhar sobre essa situação.

(55:33) P/1 - Então vamos para a última pergunta Dayane. Como foi para você contar a sua história pra gente hoje?

R - Ah, foi muito bom compartilhar a minha história, porque revisitar quem a gente é, revisitar como a gente chegou aqui, é sempre muito importante. Às vezes a gente vai esquecendo. A gente não pensa tanto na infância, na adolescência, na escola, vai se perdendo nas memórias, então poder contar, poder registrar uma parte disso é muito importante para esse momento e para o futuro também. Continuar pensando, continuar revisitando, continuar valorizando até onde cheguei e quem eu sou hoje.

(56:25) P/1 - Em nome do Museu da Pessoa, Dayane, eu agradeço muito pela a nossa conversa e pessoalmente também, muito obrigado!

R - Muito obrigada você, pelo convite!










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