As dificuldades da infância na periferia. A gravidez, aos 15 anos, e o abandono dos estudos. O retorno aos estudos, já casada e com filhos. As várias tentativas de empreendedorismo, até o sucesso com um salão de beleza. O surgimento das Marianas Mulheres que Inspiram. A entrada na CUFA de Minas Gerais. As dificuldades de trabalho durante a pandemia. O crescimento e sucesso das Marianas.
00:00:20
P/1 - Bom dia, Marciele. Tudo bem?
R - Bom dia, Genivaldo. Tudo ótimo, e você?
00:00:26
P/1 - Tudo ótimo! Vamos começar, então, com a pergunta mais básica. Eu queria que você me informasse o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R - Perfeito. Marciele Aparecida Procópio Delduque, sou da cidade de Mariana. Minha data de nascimento é 25/01/81.
00:00:52
P/1 - Te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - A minha mãe conta de forma muito breve. Nasci no meio de uma madrugada, mas de forma muito tranquila, um pouco esperada, até porque foi um parto de cesariana, que também já tinha cumprido o período correto da gestação, então foi um processo tranquilo, segundo ela. Veio nessa madrugada, e veio cheio de luz, é o que ela relata, mas ela não avança muito nessa conversa, não, até porque ela tem mais dois, então ela nunca quer trazer o floreamento só para um filho. Ela tem que [se] desdobrar sobre os outros dois também, que são bem ciumentos, mas diz ela que [foi] algo muito bem leve, desejado; uma noite muito boa, muito cheia de tranquilidade e luz.
00:01:53
P/1 - Que bom! E ela te disse porque ela escolheu o seu nome como Marciele?
R - Olha, eu já fiz essa pergunta, e ela sempre trouxe respostas diversas. Vocês acreditam? E você fazendo essa pergunta é até uma provocação também, porque nem eu fiz um estudo sobre isso até hoje na minha vida. Ela já repetiu sobre o porquê do nome, foi porque ela ouviu de alguma amiga, isso dentro de algumas poucas reflexões, mas hora ou outra ela vem com outras histórias. A que me marca é que ela veio com a história de que viu uma amiga comentar sobre o livro… Na época, a minha mãe lia muito esses livros de romance, coisas assim, na época dos anos 70, segundo ela. Inclusive lá na casa da minha mãe tem diversos desses livros de romance cheio de histórias, enfim, que fazia na época as mulheres viajarem no universo que elas desejavam, mas não tinham liberdade de viver emocionalmente. Dentro desse compartilhamento com amigas, alguém relatou um pouco dessa história romântica e trouxe esse nome; a partir daí, ela ficou apaixonada pelo nome e resolveu colocar aqui na minha vida. Mas é uma pergunta muito interessante, porque nem eu mesmo tenho essa informação para entender além do desenho da minha mãe, o significado, o porquê do nome. Não tem, mas essa é a história dela.
00:03:37
P/1 - Falando da sua mãe, eu queria que você comentasse um pouco… Informasse o nome dela, comentasse um pouco sobre ela e a sua parte materna da família?
R - Ótimo. A minha mãe é uma figura espetacular, uma mulher de muita força, uma mulher muito aguerrida. Ela também foi mãe muito jovem, ela me teve com dezesseis anos. Ela é uma mulher muito jovem, hoje eu [estou] com 41 [anos]. Ela vem de uma jornada não muito diferente de onde a gente vem, do território da onde a gente vem; nós somos periféricos, tem mais a questão da pretitude, somos mulheres pretas, então ela não veio de nenhum tipo de privilégio, pelo contrário. Veio com uma jornada bem pesada, que não é diferente de muitas das nossas, e dentro do momento que ela começou a ter uma vida um pouco mais independente, onde foi permitido a ela o namoro, o romance, que ela começou a viver uma vida que não uma vida familiar… Ela conta que foi uma vida de muita luta também, mesmo quando ainda não casada com o meu pai, mas quando saiu da casa, do seio da família para o casamento muito jovem - não um casamento combinado, mas um casamento desejado - ela conta que um pouco do desejo era para entender que universo era esse, além de uma casa que você tinha que cuidar dos outros - se não me engano são cinco tios, então cinco irmãos. Ela se dedicava muito ali. Quando ela sai desse lugar e vem assumir realmente a vida de uma mulher casada, e com ela a maternidade, que aconteceu quase um ano depois do casamento, então foi tudo muito rápido. Ela conta que foi bem difícil, os desafios, o conhecimento do novo, engravidar muito jovem e ter também um marido muito jovem e muito sonhador. Ela [era] um pouco limitada de conhecimento básico, não tinha um domínio, um acesso escolar que permitiu que ela tivesse uma continuidade de conhecimento dentro da idade dela, e sem benefício nenhum, então houve uma construção, o que eu vejo que foi fortalecedor não só para ela, mas para a relação dela junto com o meu pai na época. Mas não veio de forma fácil, foi na base de luta, de conquista, foi feita uma construção.
Ficaram casados mais de 22 anos até o falecimento do meu pai. Passou por uma jornada nesse processo. Nesses 22 anos de casamento, metade dele foi lutando junto com o meu pai [que tinha] uma doença renal, ele tinha insuficiência renal. Passou metade dessa vida, dessa relação sofrendo com isso, fazendo hemodiálise, experimentou transplante, aquela loucura toda. A família [estava] toda envolvida com a expectativa de dar certo o transplante, conseguiu, só que deu rejeição depois de três anos, teve que voltar para hemodiálise e aí passar pelo processo de novo, enfim.
A gente fala que é um acabamento da saúde, porque quando você tem aquela expectativa, consegue de fato fazer um transplante ou qualquer outra cirurgia que seja, com a ideia de que vai melhorar sua vida - às vezes nem salva totalmente, mas te dá uma qualidade de vida - tudo se estabiliza de novo, mas quando volta tudo, aí volta aquela instabilidade absurda a ponto de fazer o que fez, desestruturar muito o psicológico do meu pai e ele se entregar naquele momento, não acreditando que havia mais uma possibilidade. Foi um momento onde eu já [estava] mais crescida, acompanhando todo esse processo da maternidade da minha mãe, cuidando não só de mim, mas dos meus irmãos - eu tenho dois irmãos também, eu sou a mais velha - vendo essa luta e acompanhando tudo com ela.
Eu vi uma jornada de muita dor, de muito sofrimento. Ela ficava literalmente internada com ele, eu tinha que tomar conta dos meus irmãos. Na época, a diferença entre os dois irmãos mais novos era de três anos, então eu tinha uma irmã de seis anos, um de três anos, e eu com doze anos, cuidando dessas duas crianças. Era a realidade, realmente, de muitas [crianças], os irmãos mais velhos tomando conta dos mais novos, e acaba que os mais velhos são tão novos quanto [os outros]. Eu tive que assumir essa responsabilidade junto com ela, porque ela acreditava junto com a mãe dela que em alguns momentos estava ali conosco, mas também tinha suas atividades e outras frentes para cuidar. Foi uma fase muito difícil, mas que me trouxe uma compreensão de vida e de muita força, sobretudo muita força, porque eu via aquela luta, eu via o quanto ela estava ali, muito junto, amorosa com meu pai, transbordando além da fé um amor muito grande, não só para fazer com que o meu pai virasse aquele momento, mas que a gente do lado de cá, os filhos, se sentissem acolhidos e fortes por tudo aquilo que a gente estava passando.
No final das contas era todo mundo junto, ainda que em lugares diferentes, distantes. Era uma luta que ela passava no hospital de Belo Horizonte e nós somos de Mariana. Nós morávamos em Mariana naquela época. Imagina, sem carro! Estou falando daquela época, mas não realcei a data; isso aconteceu a mais de… Eu tenho 41, há mais de 23 anos atrás, então não se tinha essa agilidade de pegar um carro, nem tinha condições de ter um carro, de ir para uma cidade vizinha, por mais que sejam 140 quilômetros, chegar em um bom hospital e ser atendido. Não existia isso, como também não existe hoje, mas hoje a gente tem mais avanço, mais conhecimento, mais relacionamento.
Isso foi trazendo força, compreensão para o todo, para a minha família, principalmente, para mim e meus irmãos. Quando eu falo família, [é] porque somos uma família bem pequena, mas cheia de afeto. Ela deixa para a minha vida esse legado de construção, de resiliência, de que vale a pena a gente se dedicar de fato àquilo e às pessoas que a gente acredita com muita força e com muito amor. Hoje não estamos mais com o meu pai, infelizmente, mas ela deixa esse legado de que vale a pena a gente tentar até o último momento, e foi o que ela fez. Não foi uma jornada fácil, mas deixou vários pontos positivos e um legado muito forte, muito importante para a minha vida, que eu tento replicar em tudo, porque o amor transborda em tudo o que a gente faz. Independentemente do que você está fazendo, isso é o mais importante - com sabedoria, é claro.
00:11:12
P/1 - E você sabe a origem da família da sua mãe, da família do seu pai? Eles são de Mariana mesmo, vieram de algum outro lugar?
R - A família do meu pai é da divisa de Minas com Espírito Santo. Os pais do meu pai… A minha avó era índia, a bisavó dela foi escrava e o bisavô também. Da [família] da minha mãe eu não tenho muita informação.
O que acontece, Genivaldo… As suas perguntas têm sido muito provocativas, e dentro de uma discussão que vem acontecendo na minha vida nas últimas semanas, muita coisa bacana tem acontecido, sobretudo sobre uma questão de autoconhecimento. Mas só para fazer um adendo na sua pergunta, já passou essa pergunta na minha vida e a gente estava fazendo uma reflexão. Existe uma questão de recorte social, a gente vai percebendo muitos cortes, muitas coisas que a gente não tem enquanto prioridade, enquanto conhecimento: o entendimento do quão é importante você saber de onde vem, a sua história, o seu nome, o seu passado, o que aconteceu com os seus lá atrás. A gente vem com uma história no ‘geralzão’ de escravidão e tudo mais, e que saiu… No final das contas fomos libertos nada - enfim, isso todo mundo sabe - mas quando a gente traz pra gente a questão da nossa história, dos nomes de todos os nossos, a gente não tem isso na ponta da língua.
Quando você faz essa pergunta para um japonês, para um judeu, ele vai te contar tudo, ele vai te contar toda a árvore da vida dele, numerada até, se você quiser de trás para frente, e isso eu estou trazendo para mim, inclusive como responsabilidade para que faça esse dever de casa urgente, porque isso é muito importante. Eu tenho percebido isso, mas eu vejo que outras pessoas que não [são] pretas - isso também não é problema, claro - elas tem isso com muita clareza e desde sempre, desde pequenos, e na nossa casa isso não era conversado, se quer falar de forma assim, sem dor, sem timidez. Quando você pergunta, você sabe um pouco da história de quando nasceu, como foi e tudo mais; deveria ser algo muito leve, muito natural e muito na ponta da língua, coisa que não é, então eu não tenho essa árvore toda montada. Eu não tenho essa informação de todo o histórico da minha família, de onde vem, mas fica aí uma provocação para que eu me informe.
00:14:29
P/1 - Então vou comentar um pouquinho da sua infância. Você se lembra de como era a casa em que você morava quando você era criança?
R - Sim, me lembro bem. Dois momentos: o primeiro, antes da gente mudar para uma casa própria, a primeira e única casa própria, nós estávamos… Eu me lembro com muita clareza: antes de adquirir essa casa própria, nós morávamos de aluguel na cidade de Mariana, em um bairro lá na nossa cidade chamado Colina. Quando a gente estava nessa casa, até onde eu me recordo, foi uma casa onde eu e os meus irmãos ainda eram muito pequenos.
Foi no período em que o meu pai descobriu essa insuficiência renal. Ele era funcionário da Vale na época, trabalhava como maquinista na Vale. Passou mal com a hipertensão, que gerou insuficiência renal. Quando informaram a gente que ele já estava internado, que não estava muito bem, eu acredito que ali que virou a minha chave; eu comecei a trazer, comecei a processar pensamentos com clareza que, de fato… Sabe que parece que você vivia um mundinho muito de criança e nada te atingia, estava tudo muito perfeito, e você estava em algum lugar na sua casa com a segurança da sua mãe, do seu pai, dos seus ali? Mas quando chegou essa notícia - que inclusive foi no começo da tarde, me marcou muito, até - foi quando a minha ficha caiu e eu comecei a entender talvez que eu não era tão criança, que eu estava em um lugar e esse lugar era a minha casa, era a minha acomodação, era a minha vida, e a partir daquele momento coisas estranhas começavam a acontecer.
Aí vêm pessoas da empresa chegando nesta casa - eu vou trazendo isso na memória - informando à minha mãe que ele não estava em uma situação legal, que tinha sido transferido para Belo Horizonte já com urgência, e aí foram chegando pessoas diferentes nessa casa. Foi quando eu comecei a entender um pouco desse espaço; para mim era o meu mundo, que ninguém vinha. Apesar de os irmãos da minha mãe morarem na cidade, a gente tinha essa relação, mas [era] uma questão familiar, então você vai no automático: o meu tio chegou, a minha avó chegou, tudo bem no meu espaço, mas quando você vem de um movimento desesperador trazer informações que não são boas, dizer que o seu pai não está mais ali, que está acontecendo algum problema, e a sua mãe não compartilha aquilo com você porque entende que você é criança e não tem consciência de tudo que está acontecendo, foi essa virada de chave.
Eu me lembro claramente desta casa. Era uma casa boa, o meu pai já estava bem colocado na empresa, então ele pôde nos proporcionar um bom lar. Ele sempre batalhou bastante por isso, ele conseguiu, nessa jornada que não foi fácil para a minha mãe; conseguiram os dois, então a gente estava muito bem nesse momento que ele teve que parar. Se eu não me engano, pouco tempo depois - não me recordo o tempo - tiveram que aposentar, porque depois dessa notícia ele não pôde mais voltar a trabalhar. Quando veio a notícia - a gente ainda dentro dessa casa… Antes da notícia chegar, já pairavam algumas conversas da minha mãe junto com a família dela que teríamos que sair do lugar, porque era uma realidade financeira completamente diferente a partir do momento em que o meu pai fosse aposentado por invalidez. Fizeram isso, a Vale.
A minha mãe, na época, ficou sabendo que o prefeito da cidade estava distribuindo lotes em uma periferia bem cantão, onde ninguém dava absolutamente nada além de votos políticos, e claro, a gente, o povão ficou sabendo. Minha mãe: “Opa, vamos ver que negócio é esse, como é que funciona.”
Ela entrou para uma fila gigante para tentar um lote nesse lugar chamado Cabanas do Barão - um bairro completamente afastado, extremamente periférico. Hoje ele é o maior bairro da cidade, super referência, tem de tudo que você imaginar, mas antes não tinha absolutamente nada além de cabanas. É bem conforme o nome mesmo, eram cabaninhas, porque na cidade de Mariana tinha barões que colocavam ali seus funcionários, um pouco também de escravos para ficar tomando conta daquele mato, para ficar tomando conta daquele terreno gigante, para ninguém tomar aquilo, então era cheio de cabaninhas.
Na época, o prefeito conseguiu negociar com a companhia, que na época era dona, pegou esse espaço e começou a compartilhar para alguns moradores - hoje a gente pode chamar que seria Cadúnico, que estava dentro desses recortes de necessidade e na época não existia isso. Na época, a gente se enquadrou. Entramos em uma fila gigante e conseguimos um lote.
A partir de então começa a vir à minha memória a conquista do lote, de muita batalha, porque a minha mãe tinha que ir para a fila, literalmente você tinha que estar lá, e com meu pai internado ainda em Belo Horizonte, ainda com esse processo da insuficiência renal. Ela com os três filhos pequenos, contando comigo. Nós tínhamos que ir com ela para esse lugar, ficar sentada esperando aquelas pessoas que vinham para fazer o cadastro; faziam todo um levantamento da sua vida e você tinha que estar naquela fila.
A gente ficou indo, Genivaldo, mais ou menos [por] uns três meses, um dia sim, um dia não; tinha vez que a minha avó ficava com a gente. A minha mãe estava lá todos os dias, a gente é que não ia todos os dias com ela; ela tinha que estar na fila naquele horário.
Conseguimos o cadastro, conseguimos o lote depois de tudo resolvido. Meu pai [foi] afastado, aposentado por invalidez. Quando saiu a aposentadoria, ele saiu do hospital, voltou para a casa, mas já em um processo bem debilitado. Além da hemodiálise, ele tinha que fazer alguns processos em casa.
Você sabe como funcionava essa questão da hemodiálise? São dois tipos: uma que eles colocam fístula no braço, vai filtrando ali pelo braço, e outra, dependendo da saúde do paciente naquele momento, é feita pelo abdômen; tem uma bolsa que é retirada, todo esse processo de restante de líquido, que é um processo que a máquina faz, e o meu pai teve que fazer primeiro esse processo da bolsa, que o deixava mais debilitado e muito dependente da minha mãe. A minha mãe tinha que trocar aquilo duas vezes por dia, enfim, todo esse processo médico, de enfermeira em casa.
Quando saiu essa aposentadoria, conseguiram aposentá-lo de fato, saiu um dinheiro e esse dinheiro permitiu que a gente começasse a construir a nossa casa lá nesse lugar que ela ganhou, mas até a gente passar por esse processo de saída do dinheiro do meu pai e começar a construir lá nesse lote…. Os irmãos da minha mãe ajudaram, a família ajudou bastante na mão de obra. Todo mundo ia para lá cavar buraco, fazer base, subir tijolo. Fizemos esse movimento. E como era um bairro que todo mundo estava chegando junto, um foi ajudando o outro.
Parte da casa era um pouco de lona, a outra, um pouco de alvenaria. Você [ia] juntando aquilo tudo e as pessoas iam se ajudando, um estava no lote do outro, apoiando. Foi assim que aconteceu com a gente, pegamos esse dinheiro e conseguimos investir parte dele.
Meu pai, debilitado ainda nessa casa, esperando a casa nova ficar pronta… Ele não podia ajudar nesse processo. Dessa hemodiálise em casa, em outra parte de Belo Horizonte, nós tivemos que nos virar mais uma vez. A gente já não tinha muita grana para a obra e para a casa que ainda mantínhamos o aluguel. O dono da casa nos mandou embora, literalmente, porque a gente começou a atrasar o aluguel; nos deu um prazo para sair, porque a família também não tinha dinheiro para ajudar a gente a pagar. Não sei o período que demorou para a gente sair, mas eu sei que foi algo assim, de muita pressão, porque ele estava lá na porta quase todos os dias, cobrando a minha mãe, o meu pai, e ela mostrando a situação junto com ele. Eu me lembro disso de forma muito triste até, porque eles ficavam super tensos e preocupados, não tinha de onde tirar grana, e acabou que a gente foi para essa casa que a gente ganhou o lote sem finalizar. Tivemos que colocar piso que não tinha, era piso grosso, e como esses lotes que foram cedidos era algo da prefeitura, tinha algumas casas de loja de material de construção, inclusive de pedra.. Minas tem muita pedra sabão, ardósia, essas coisas; eles doavam muito resto de material e a gente foi pegar resto de pedra de ardósia, que eles estavam doando, pra gente levar para a casa para colocar piso.
Meus irmãos e tios fizeram de novo aquele mutirão para colocar o piso, para poder levar o meu pai, porque ele não podia estar em qualquer lugar. [Tinha] uma questão de cuidado, infecção, limpeza, tinha tudo isso, e a minha mãe se preocupava pra caramba por ser uma bolsa ali dentro da sua barriga com uma mangueirinha, então qualquer coisa era perigosa. Tivemos esse movimento com a casa de ardósia que nos cedeu, para que a gente conseguisse três cômodos prontos para nos receber, aí nós mudamos.
Esse processo da casa com uma lembrança… Uma casa muito boa, até o período que o meu pai ainda [estava] saudável, e logo veio a notícia desse problema, quando ele passou mal… A casa [era] boa, tudo [estava] muito organizado dentro da minha vida e eu acreditava que aquele era o meu mundo. Minha ficha caiu com a notícia, em seguida começamos a passar por esse processo de muita dor. Depois que ele retorna, aí veio a questão do despejo de fato, uma pressão muito grande. Logo em seguida a gente, depois de todo esse aperto, conseguiu aquele lote. Fomos para lá e ficamos nesses três cômodos. Fomos construindo a partir daí, naquele tempo que obra de pobre nunca acaba, como diz a minha mãe. Você sempre está ali: “Então agora vamos subir essa parede, agora vamos fazer isso”. Hoje, graças a Deus, não mais, mas na época foi bem pilarzinho, sabe, degrau por degrau para a gente conseguir ter uma casa para falar: “Agora dá para a gente morar com tranquilidade e dignidade”.
Foi um processo de lembrança relacionado à casa, que inclusive é a casa que a gente tem, é a única casa que a gente tem lá. Hoje eu tenho uma casa em cima da casa da minha mãe; eu casei, isso já faz um bom tempo também, e mantenho a minha casa, a minha vida, em Mariana também, em Belo Horizonte; hoje de uma outra forma, bem mais construída, mas não significa que mais sólido que antes. Como eu disse, essa pavimentação vem desde sempre da minha mãe.
00:27:12
P/1 - E com todos esses transtornos, toda essa dificuldade que você e a sua família passaram, você tinha tempo de brincar?
R - Olha, raramente, mas às vezes acontecia. Como a gente foi para um bairro novo, cheio de crianças, e a minha mãe [estava] ausente, porque acompanhou [por] muito tempo esse processo com meu pai de ir pra Belo Horizonte três vezes na semana, tinha alguns momentos que, mesmo com a responsabilidade de irmã que tinha que dar conta, eu tinha ali os meus primos. Meus primos também estavam lá perto, os meus tios também conseguiram lote lá, então quando a gente está mais perto da família, qualquer movimento pra gente era movimento. A gente brincava bastante sim, tinha os momentos de menos dor, de menos tensão, que a gente conseguia fazer essas brincadeiras bem típicas. Como era muita obra, então era muito pique-esconde, tinha muita laje e base, estrutura da casa. A gente se escondia, a gente fazia rouba-bandeira, queimada.
Tinha um movimento natural da nossa idade. O que impactava, o diferente era: em qual tempo? Era sempre? Não, só quando dava mesmo, quando não tinha que estar tomando conta dos dois mais novos da casa, mas sempre que tinha um tempo a gente estava junto com os primos, tentando viver uma infância que a gente não tinha nem ideia do que que era. Mas a gente estava lá, colado um com o outro e tentando brincar de vez em quando.
00:29:13
P/1 - E você se lembra se vocês ouviam rádio, assistiam TV? Do que você gostava?
R - Sim, Genivaldo, eu adorava assistir TV. Na época, a TV era dessas que mudava o canal girando, você lembra? Televisão pequenininha, mudava de canal girando. Ela era marronzinha, aquele tubo assim, pequena. E era a única televisão da rua, porque como eu falei, o meu pai veio de uma construção financeira mais estável, então antes da gente sair da casa tinha uns móveis, boas coisas em casa.
Na época, a televisão era o ápice, que mudava… Era marrom, não era tão pequenininha, mais que catorze polegadas, então ali era o evento. Na rua que a gente mora, onde a gente conseguiu o lote, as pessoas ainda não tinham TV, a energia era por ‘gato’. Na hora da novela, a janela do quarto onde ficava a televisão era o cinema para os primos todos que estavam lá, e às vezes passava até vizinho para ficar ouvindo algumas coisas.
Tinha muito jornal. Eu me lembro do da noite, a época eu nem recordo agora. Eu me lembro que aquele cara, Cid Moreira, acho que [era] ele que fazia, e aquilo pra gente era um marco. Começou a noite, está acabando a noite, acabou agora o nosso momento de assistir TV. Sabe essas coisas? E durante o dia a minha mãe não deixava a gente ligar a televisão, para não correr o risco das pessoas descobrirem a questão do ‘gato’, esses paranauês todos. Quando a gente conseguia ligar a TV, que ela não permitia… Mas a gente fazia coisa errada mesmo, a gente ligava, na época já passava o Chaves, então a gente ia só para essas artes assim, coisa rápida. “Sua mãe está chegando, desliga”, coisa do tipo.
Então sim, a gente via poucos, mas à noite era certo, porque a gente tinha até um público que estava lá na janela para assistir. Durante o dia era coisa muito rápida, porque ela tinha medo, e quando deixava também era bem breve, do tipo: “Vou deixar sossegar e aí eu tenho tempo de fazer alguma coisa.”
A gente tinha esse momento de TV. De rádio não, eu não ouvia muito, não. O meu pai ouvia muita música, mas não era algo que chamava a minha atenção. Isso foi chamar a minha atenção [quando] eu já estava um pouco mais velha.
00:32:06
P/1 - E ainda falando da sua infância, você se lembra de alguma comida preferida, aquela que você fala: “Nossa, hoje tem isso, que delícia”?
R - Tem, você acredita? Banana da terra frita. O meu pai, por vir um pouco dessa questão capixaba, de ser ligado, então comia muito peixe e banana da terra, muita moqueca. Na moqueca tinha banana da terra, em tudo tinha banana da terra, aí é algo que até hoje para mim marca, sabe? Eu adoro! Toda vez que eu tenho oportunidade, eu compro, eu como. A comida que eu amo, que me marca, que eu não dispenso é banana da terra.
00:32:51
P/1 - Bom, então vamos começar a falar um pouquinho sobre a sua vida escolar. Quais as primeiras lembranças que você tem de ir para a escola?
R - Horríveis, Genivaldo, porque desde o meu primeiro dia na aula eu sempre tive muito medo, eu não sei te explicar o porquê. Na primeira vez que a minha mãe me deixou na escola eu já fiquei meio desesperada, achei que ela não fosse me buscar mais. Só que talvez isso passe por um processo de tudo o que a gente já estava vivendo antes, sabe, um pouco de medo, um pouco de desespero, sem ter noção das coisas.
Quando eu vou para a escola - eu vou para a escola com seis anos - o meu medo era a minha mãe não me buscar. Nesse período, até terminar a aula era uma aflição. Acontecia em alguns momentos de ela atrasar um pouco para me pegar; eu não estudava perto de casa e não sabia o caminho de casa.
Essa escola se chamava Santo Estevão. Virou uma coisa meio de irmandade, das irmãs tomarem conta. Virou tipo uma creche. Inclusive hoje, na cidade, é muito referência e muito boa, mas não era perto de casa.
Eu não tinha referência nenhuma. Não sabia meu endereço, se eu precisasse ir embora eu não sabia, e a minha mãe às vezes se atrasava por várias coisas, todo mundo ia embora e eu ficava lá com alguém, esperando a minha mãe chegar. Aquilo foi me traumatizando, então eu tinha muito medo, dentro da sala de aula, essas coisas.
Eu não me recordo, não tenho uma lembrança de como as coisas aconteciam no começo da minha vida escolar. Um pouco mais para a frente, quando eu saio dessa escola chamada Santo Estevão e vou para uma outra escola na rede estadual, já estava mais velha. Tinha cerca de oito, nove anos, fui fazer a 3ª série. Nessa escola estadual, aí sim eu já tinha mais clareza de tudo, compreendia que a minha mãe ia voltar para me buscar.
Meu pai já estava mais presente na minha vida, mesmo com as limitações; as coisas já estavam mais avançadas, já estava lidando com aquilo dentro do tratamento, então ele voltou a sair de casa e tudo mais. Ele me buscava na escola, [era] sempre muito pontual. E o que me marca quando lembro dessa história, na verdade, nem é a escola. A escola sempre foi muito acolhedora, inclusive na escola eu encontrei mais uma pessoa preta; era só eu, mulher, e mais um menino preto. [É] incrível, a gente é amigo até hoje, e [por] coincidência do destino moramos no mesmo bairro lá em Mariana. Ele é um grandessíssimo amigo.
Enfim, o que me marcava era que todo o final de mês, quando o meu pai recebia a aposentadoria, ele me buscava na escola e nós íamos em um restaurante próximo que vendia misto quente. Todo final de mês eu já sabia que ele ia me buscar, a gente iria para esse lugar, eu ia comer misto quente, e ia ser o melhor misto quente da minha vida. Era muito gostoso, eu chegava na escola no outro dia contando isso para a professora que vibrava, e para a merendeira - na época chamava merendeira, hoje acho que chamam de servente escolar. Inclusive, essa merendeira é a mãe desse carinha preto que hoje é o meu grande amigo. Era incrível porque ela também vibrava, porque era a nossa realidade, a gente era do mesmo lugar. Ela sabia o quanto isso era importante para marcar a vida de uma criança, como o filho dela também, e ela mãe solo, tinha essa dor.
Fui ter consciência bem depois, mas na época ela vibrava. Ela falava assim: “Nossa, eu vou falar com o Luiz.” Luiz é o nome desse amigo meu, filho dela. “Vou falar com o Luiz para falar para o seu pai levar ele também, porque ele gosta.” Na época ele não tinha muita referência paterna, e aí eu falava com o meu pai: “Pai, tem que levar Luiz para comer um misto quente com a gente.”
A gente tinha esse momento. E a escola, ainda que de forma muito rápida na minha vida nesse período do fundamental, foi algo que passou muito rápido, como se eu estivesse ali realmente só para cumprir etapas, mas não com muitas marcas, tirando esse primeiro momento de dor. Eu acredito que por falta de compreensão de tudo, pela idade e tudo mais. Foi essa experiência na escola estadual, [em] que eu já tinha uma consciência, um pouquinho de: “Não, já sou um pouco maior. Meu pai vem, minha mãe vem me buscar”, ou “agora eu posso ir sozinha”, “no último dia do mês a gente vai comer o misto quente”. Aí eu fui tendo essa consciência de um todo e fui avançando, mas sem muitas marcas, e sem dor também nesse momento na escola estadual, mas de forma muito leve. Nada marcou de fato, além desse movimento.
Na verdade nem é a escola, mas o que aquele ambiente, após sair dali, me proporcionava. Era saber que o meu pai estava ali fora, minha mãe estava lá fora, e ele me permitiu ir sozinha até a metade do caminho encontrá-lo, então eu tive esses momentos bem leves no fundamental.
00:39:02
P/1 - Avançando então um pouco para o ensino médio. O que mudou quando você mudou de escola? Seus gostos foram se modificando na adolescência, conta um pouquinho pra gente como foi esse período?
R - Nossa Genivaldo, foi um período longo, porque eu fui mãe muito jovem. Eu passei por todo esse processo: mudei de casa, fui para a nossa casa própria… Teve um momento que eu tive também que mudar de escola. A gente não tinha ainda escola no bairro porque estava começando. Até chegar escola para que eu tivesse um lugar próximo e diminuir um pouco essa corrida de ter que ir para o centro da cidade para estudar na escola estadual, ao invés de poder estudar ali no meu bairro que era a cinco minutos de casa, eu andava praticamente uma hora para chegar na escola. Quando eu tenho esse avanço escolar por causa da idade, [do] período, eu comecei a experimentar a escola logo que foi lançada no nosso bairro. Demorou um pouquinho, mas não foi muita coisa, não. Até que o prefeito foi muito ágil nessa entrega do espaço escolar para as pessoas que ali viviam.
Quando eu comecei nessa escola foi bem bacana, porque tudo era novo. Não era novo para mim, era novo para todo mundo que estava lá. Aí sim começaram as minhas experiências escolares, de me relacionar com as pessoas, de ter mais de dez anos, de entender melhor as coisas, entender os desafios, os desafetos - que eu também tive, sem entender o que estava acontecendo, mas que do nada simplesmente não gostam de você porque você existe; é normal isso dentro da escola, acontece, mas te marca, te traz lembrança. Você fala assim: “Gente, mas porque fulana fazia isso, falava aquilo?”
Enfim, tive brigas na escola, olha só. Eu pensava que isso nunca ia acontecer na minha vida. Simplesmente por estar lá, a pessoa resolveu brigar comigo. “Quero brigar com alguém. Ah, a Marciele.” Tive esses paranauês aí, tive essa do nada que surgiu na minha vida e isso me marcou porque foi a primeira e última vez. Simplesmente eu não sei o que aconteceu, a menina simplesmente quis me bater. Apanhei até, boba igual… Não fazia ideia nem do que estava acontecendo, mas aí lá na frente a gente vai entendendo. Era uma menina mais velha que eu, mas que estava ali tentando se colocar em um ambiente, mostrando que ela era superior àquilo tudo e que ela mandava. Tinha que ter uma boba ali naquele momento para fazer a audiência dela subir. Acho que eu passei na hora errada, deve ser, e foi bem isso.
E assim, mais uma vez, mesmo vindo essa galera toda de periferia, esse monte de gente junto - muita expectativa, verdadeiramente pobres de conhecimento, pobres de grana mesmo - ainda assim não eram muitos pretos. Na cidade de Mariana não tem muitos pretos, ou os que tem não se assumem pretos, então tem essa questão também, como sempre teve. Só que antes [era] muito mais, não falavam sobre isso. Eram poucos pretos que tinha na escola, então sempre virava um lado ruim pra gente.
Nesse período na escola, fui compreendendo, fui avançando as séries, a 6ª, a 7ª série… Nisso eu cheguei na minha idade de catorze para quinze anos e eu comecei a namorar o pai da minha filha. Eu fui mãe muito jovem, como eu disse, fui mãe com quinze anos. O pai da minha filha não era da cidade de Mariana, ele era de Passagem de Mariana, estudava já na escola técnica em Ouro Preto. A gente começou a se relacionar, fiquei grávida e eu comecei… Enfim, a ter outra vida, outra realidade. Começando a oitava série foi quando eu fiquei grávida dele.
Eu saí da escola. Resolvi sair porque a pressão estava muito grande. A pressão comigo mesma, pela falta de informação. Na época eu não tinha… Por mais amável que a minha família fosse, que a minha mãe fosse parceira dentro de tudo que eu dividi aqui com vocês, não tínhamos uma relação aberta a ponto de dialogar sobre tudo, principalmente sobre uma vida de… “Olha, agora você tem um filha que é adolescente, aberta a tudo e todas as experiências que vai acontecer na vida dela”. Não falavámos sobre isso. Como ela vem dessa cultura de não falar sobre isso, de não falar da vida dela também, na época, eu não atribuo essa falta de diálogo à questão de eu ter ficado grávida, porque nessa fase inclusive um mínimo de informação eu tinha na escola, mas sabe aquela coisa: “Isso nunca vai acontecer comigo”? E na minha primeira experiência sexual fiquei grávida, na primeira! Falei: Eu não estou acreditando que isso está acontecendo.”
Veio uma menina linda, que hoje tem 25 anos. Na época, foi um absurdo para minha família, um absurdo para a sociedade. Imagina, hoje eu tenho 41 [anos], então há 25 anos atrás uma menina de quinze anos ficar grávida em uma cidade que é um ovo, em um bairro que está começando, numa família completamente despreparada, inclusive emocionalmente, para lidar com tudo isso, e eu era a única menina grávida ali da região; não era algo normal, comum, como não deve ser mesmo. Foi muito difícil, meu pai relutou pra caramba.
Eu descobri que eu estava grávida no terceiro mês, aí a mãe do pai da minha filha… Ela foi muito presente na minha vida com relação a isso, com outra maturidade, postura. A minha mãe ficou muito com medo, então ela teve que ficar um pouco equilibrando a emoção do meu pai e a dela, e administrando ali o meu caos. Eu ainda estava dentro de casa, então eu era um problema para a minha família naquele momento, porque eles estavam com vergonha de mim. Acredito também que [estavam] com medo de tudo o que ia acontecer a partir daquele momento; era uma criança gerando uma criança, eu tinha acabado de fazer quinze anos. Eu fiz aniversário em janeiro e fiquei grávida em fevereiro, então era tudo muito novo.
O meu pai, quando eu descobri e tive que contar… Inclusive foi a mãe do meu ex-marido, o pai da minha filha; ela que contou para a minha mãe e a minha mãe teve que fazer essa conversa com o meu pai. Meu pai saiu de dentro de casa para matar ele, o pai da criança. Foi bem isso, foi desesperador, mas até aí é um caos, você imagina. Eu era a filha mais velha, eu era a apoiadora, eu era aquela menina-mulher que estava dando conta de tudo naquele momento. Era apoiadora da minha mãe, automaticamente, com certeza a minha mãe dividia ali que eu estava tendo responsabilidade com a casa, com os meus irmãos enquanto ela estava com o meu pai. Quando [ela] não falava o meu pai presenciava tudo.
Eu sempre fui uma grande querida do meu pai, não a escolhida, mas sabe, a primeira filha, dentre outras coisas, então imagina a decepção que eu causei para ele naquele momento. Ele quis resolver o problema indo lá matar o meu ex-marido. Falei: “Ainda bem que deu ruim e ele não achou ele lá.” Saiu irado, enfim, foi um caos. A gente teve que pedir ajuda de alguns amigos para conter aquele sentimento.
Ele ficou muito triste, muito chateado comigo. Ficamos sem conversar a minha gestação inteira. A minha mãe veio para me apoiar, mas com muito medo, equilibrando de fato essas emoções do meu pai, a minha.
Eu saí de casa, fui na época para a casa da minha sogra, porque eu não casei logo que descobri, então eu fui morar com o pai. Ele morava com a família dele, então eu fui para a casa da família dele, cumpri ali toda a minha gestação.
No dia que a minha filha nasceu, o meu pai estava fazendo hemodiálise nesse hospital. Mariana já estava apta para receber os pacientes de insuficiência renal, já tinha um espaço ali, acho que se não me engano se chama Nefrologia. No dia que ela nasceu, ele foi no quarto do hospital. Falei: “Meu Deus, agora ele veio!”
Entrou no quarto do hospital onde ele estava. Eu falei: “Agora ele vai matar a mim e a minha filha”, porque a gestação inteira a gente não se falou, e eu morava lá na casa da minha quase sogra - a gente não tinha casado.
Eu falei: “Pronto, agora o meu pai entrou aqui.” Eu fiquei em pânico na hora que vi o meu pai, porque fazia tempo que eu não o via rapidamente, mas ele não conversava, não me abençoava. Sabe essas coisas que a gente tem normalmente no nosso dia a dia? É chegar, ser abençoado; é sentar e conversar, coisa de mineiro, a gente fazia toda hora. Se você sai pela porta, [quando] voltou, já pede benção, como se tivesse acabado de acordar. Ele não fazia mais isso comigo; não dava bom dia, então imagina, aquilo para mim era uma dor muito difícil, como também era para ele.
Ele foi informado que entrei em trabalho de parto e ganhei a minha filha; saiu da sessão de hemodiálise e foi pro quarto. Falei: “Pronto, agora ele veio matar nós duas e está bem. Pelo menos ele vai aparecer aqui, vai cumprir o desejo dele.” Morri de medo, até ele chegar assim… Cara, dividindo com vocês me traz a memória, porque ele desabou na hora que viu a minha filha. Na hora que ele quis pegar, foi muito amor, muito afeto. Foi um momento de muito perdão ali dentro do quarto, a gente pôde conversar como se nada estivesse acontecido e ele transbordou ali o amor do jeito dele - coisa de pai, lógico, doído pra caramba, porque eu imagino que eu ficaria assim também. [Ele deve ter pensado]: “Eu gerei toda aquela vida, aquela menina, é a minha filha. Como é que com quinze anos está grávida e tem uma menina?” Então imagina! Ele tinha ali um plano para mim e eu desconstruí tudo aquilo, mesmo sem saber que ele tinha um plano, mas eu desconstruí aquilo, cortando talvez o ciclo. Ainda que ele tivesse o desejo que eu fosse mãe, claro, mas não [deveria ser] com quinze anos.
Foi muito lindo, porque foi a hora que eu senti que ele liberou um perdão na minha vida. Quando eu saí do hospital, inclusive ele não queria me deixar voltar para a casa da família do meu marido. Ele queria que eu ficasse lá em casa. Comecei a ter que intercalar dias na casa com o meu pai e a minha mãe, então a gente retomou essa relação de forma muito mais profunda.
A Natalie, a minha filha mais velha, se tornou talvez a menina que ele queria que eu fosse lá atrás. [É] uma pena que ele não conseguiu estar com a gente até hoje, enfim, Deus sabe de todas as coisas. Quando ele partiu, a Natalie já tinha seis anos, então não deu para cumprir ali até uma adolescência, a vida adulta.
Nesse processo todo, quando eu tenho que sair da escola…. Agora voltando, eu fiquei grávida, saí da escola; eu estava na 8ª série, fui mãe, tive esse caos dentro de casa por causa da gravidez, e aí eu resolvo não voltar mais, Genivaldo, para a escola. Para mim, ali a minha vida escolar acabou, não tinha por que… Porque junto vem a vergonha, os apontamentos. As minhas amigas que eu tinha na escola na época, as mães [delas] não permitiam que eu me relacionasse mais. A gente tem muito disso lá em Minas, toda hora você está na casa de alguém, sentado na porta de alguém, na casa, e isso não podia, não acontecia mais com essas minhas amigas; as mães não deixavam porque eu não era uma boa companhia. “Como, uma menina de quinze anos, com a minha outra filha de quinze anos, grávida? É lógico que a minha filha vai pegar isso como exemplo!”
Muitos trataram dessa forma. Não que eu tivesse muitas amigas, mas as poucas [que eu tinha] as mães trataram dessa forma, então eu fiquei completamente isolada. Foi uma gravidez só minha e do meu marido, mais a família dele, que foi muito apoiadora; nem a minha foi presente assim, por causa de tudo o que eu te falei.
Fiquei com muita vergonha. Fui à escola conversar com a diretora, a diretora pedindo para que eu não parasse, aí nisso eu desabei, porque eu não tinha outra mulher conversando comigo com esse olhar: “Olha, é necessário que você permaneça. Isso vai passar, você vai ganhar sua filha, vai precisar finalizar a sua vida escolar, avançar para que ela tenha uma vida melhor.” E eu falando que eu não dava conta, porque dentro da sala de aula seria mais apontada ainda.
Fui forrada de vergonha, coberta de vergonha dos apontamentos, por também na minha vida escolar não ter sido muito… Sei lá, um sentimento de não ter sido muito relevante para a escola naquela época, como eu e todo mundo era, mas aquele sentimento, aí você vai só escorando em desculpas para não ter forças para lutar. Foi isso que aconteceu. Achei naquele momento mais fácil desistir e não voltar mais para a escola, mesmo sendo a escola já local, perto de casa e tudo mais, mas eu não avancei. Eu parei na oitava série, fui retomar essa vida escolar [quando] eu já tinha o meu segundo filho, já estava no segundo casamento, e aí vem outra história.
(PAUSA)
00:54:48
P/1 - Voltando, Marciele, antes da gente começar a falar sobre a sua volta aos estudos, eu queria que você comentasse um pouco como foi ser mãe para você.
R - Transformador. Ser mãe para mim é a experiência mais única que a mulher de fato tem. É muito transformador, é impossível uma mulher depois que é mãe não sair transformada, impactada, então para mim não foi diferente. [Foi] algo ímpar. Eu não me imagino sem os meus filhos hoje. Para mim foi algo muito transformador, me fez de fato ser a mulher que sou hoje.
00:55:38
P/1 - Você estava comentando que você teve um segundo filho, mas foi após a sua separação. Então me conta um pouco como foram esses anos, com a sua primeira filha, depois a separação, depois um segundo filho, pra gente começar a pegar esse fio para continuar com essa história.
R - Tá, vamos voltar lá. Na verdade, o meu segundo filho veio oriundo dessa primeira relação, ou seja, o pai da minha primeira filha é o pai do meu segundo filho. Logo [que] o meu segundo filho tinha de três para quatro anos, foi quando eu me separei. Depois tive um novo parceiro, um novo relacionamento e um novo casamento; me casei pela segunda vez, gerei também mais um filho.
Hoje eu tenho três filhos, sendo dois da primeira relação e o terceiro, que é o mais novo, com catorze anos, da última relação, do meu segundo casamento.
00:56:52
P/1 - E como foi a experiência do casamento para você? Eu digo o dia, a cerimônia. Você se lembra das duas, como você estava se sentindo no dia?
R - [É] muito louco isso, viu, porque no primeiro casamento, eu casei jovem também. Eu não casei grávida, mas logo que a minha filha nasceu, como eu disse, de quinze para dezesseis anos… Ela veio em novembro, então me casei quando fiz dezesseis anos. Foi aquele casamento na igreja católica junto com o batizado do filho, a gente já fez aquele movimento todo.
Cheguei atrasada na igreja. Mesmo chegando super atrasada na igreja cumpri todo o protocolo, vestido de noiva, busca isso, busca aquilo, só que em um processo um pouco diferente, porque quando eu me casei pela primeira vez a minha situação ali financeira era zerada, e o que eu fiz? Fui pedir apoio a uma das diretoras da escola que eu estudava, porque ela acompanhou todo esse processo. Ela foi das mulheres que me apoiou, falando para que eu não desistisse da escola. Fui procurá-la, contar que ia casar e tudo mais, e ela super me apoiou, inclusive pagou o meu vestido de noiva.
Fui, cumpri toda a tabela, peguei o vestido, marcamos casamento, casamos na igreja católica, cheguei super atrasada, mas chegando lá, mesmo com mais de uma hora de atraso, estava rolando um casamento que não estava agendado para aquela igreja. Olha o caos! Cheguei super atrasada, achando que estava difícil para mim, mas estava difícil para todo mundo. Os meus convidados que estavam do lado de fora, a ornamentação do meu casamento, que tinha sido contratada, estava do lado de fora, esperando o outro acabar. No final das contas, casei praticamente quatro horas, mas deu tudo certo, foi tudo lindo.
Fiquei casada durante cinco anos com esse primeiro marido, que me deu o segundo filho, que hoje é o meu filho do meio. Logo que eu me separei, depois desse momento, desse período casada, pouco tempo depois, menos de um ano, conheci outra pessoa, comecei a me relacionar. Fomos morar juntos e também resolvemos nos casar. Nisso eu já tinha cumprido todo o trâmite de separação com o primeiro. Eu falei: “Não, agora é isso que eu quero”, porque me casei muito jovem. Pensei: “Ah, tudo bem, tinha que dar errado. O que tinha que dar já deu, então agora eu vou para outra.” Enfim, uma nova fase, uma outra cabeça, uma mentalidade já mais madura, mulher, mãe de dois filhos agora, não só de um apenas. “Estou com outra cabeça e quero experimentar um casamento verdadeiro até que a morte nos separe.”
E aí vou eu para o segundo casamento. Casei de novo, me organizei toda, fiz todo o movimento. Nessa época, eu tinha… Logo que conheci o meu segundo marido eu já tinha me convertido para a Igreja Batista, religião cristã, e podemos naquele momento fazer uma cerimônia, conforme todo o trâmite permitido por uma questão religiosa; mudei de religião, então poderia fazer uma cerimônia novamente e a fiz. Convidei os amigos mais chegados. Eu já estava em uma outra vibe, uma outra relação, uma outra maturidade. Ele também vem de outras culturas e de um outro estado, ele é paulista.
A gente organizou tudo, já estava em uma vida adulta, uma outra fase, e fiquei casada com ele durante dezesseis anos; [o casamento] me gerou um filho que hoje tem quatorze anos, é o Daniel, o mais novo; é a raspa do tacho, fechei a fábrica.
Faz mais ou menos… Nesse processo de casada, descasada, casada de novo, descasei de novo… Ou seja, fechei os dois casamentos: o primeiro com cinco anos, o segundo com dezesseis [anos]. Eu me separei faz praticamente quatro anos e nesse momento estou divorciada.
Foi um processo muito bom, que também me trouxe muita maturidade. Além da maturidade, muitas responsabilidades. E eu vou te dizer, Genivaldo, também dois grandes amigos, porque foram dois grandes homens na minha vida. Eu não me separei porque em algum momento eles não foram bons parceiros a nível de respeito, a nível de cuidado [e sim] porque realmente o processo não deu certo, sabe? A questão da relação, do momento, do querer, porque é tudo muito novo. Quando você começa a experimentar a vida muito nova, você acredita que tudo aquilo que está vivendo você quer para o resto da sua vida; essa jornada que é a vida vai nos surpreendendo e você vai entendendo que nem tudo é de fato que você sempre quis, e que esse verdadeiro aí “que dure para sempre”, o ‘sempre’ sempre chega. É importante que você saiba dosar isso de uma outra forma, com menos dor, menos culpa.
[Foi] isso que eu fui aprendendo ao longo, principalmente nesse segundo casamento, que me trouxe uma maior maturidade, junto também com o meu parceiro. Como eu disse, foram grandes homens na minha vida, que me ajudaram pra caramba nessa formação. Inclusive, esse segundo casamento foi um grande incentivador para que eu voltasse a estudar; foi por ele, por incentivo dele, por mim também, mas o incentivo naquela época de parceiro, marido e amigo, que me fez enxergar a importância de voltar aos estudos. Foi quando tudo de fato começou a se transformar na minha vida, a partir desse retorno para a escola.
Já respondendo a sua pergunta, eu voltei por isso, porque ele foi um grande incentivador. Eu já tinha mais de 21 anos na época que me casei, e ele falou: “Você tem que voltar, [parou na] oitava série, mas você é muito nova, não está trabalhando.” Ele já trabalhava, então arcava com todo o compromisso da casa. “Os meninos estão pequenos, aproveita, dá para você conciliar.” “Tudo bem, então eu vou tentar.”
Ainda [estava] com medo por causa de tudo que eu vivi lá atrás. Saí da escola com quinze anos, deixei um histórico pesado lá, uma menina grávida de quinze anos, e voltei depois de praticamente seis, sete anos para a escola, para a oitava série. Como é que eu vou viver isso? Ele falou: “Vai, estou contigo.” Eu falei: “Então vou procurar uma escola para que eu possa estudar à noite, uma vez que os nossos filhos estão estudando de manhã.”
Eu tinha essa jornada de dona de casa, de levar menino para a escola de manhã, voltar, cuidar da casa e deixar tudo pronto, para quando o marido chegasse estar tudo em ordem. Essa era a minha vida, essa era a minha rotina. Hora ou outra eu inventava determinadas coisas para fazer, mas não muito relevantes a ponto de não me sobrar algum tempo. E ele falou: “Não tem necessidade de você estudar à noite, vai ser um contraturno desnecessário. Você vai para a escola à noite, na hora que os meninos já estão em casa, na hora que eu já estou em casa, é o nosso momento.” Aí vem aquele discurso todo, de família, de que tem que estar todo mundo junto na hora do jantar, e por aí foi. Falei: “Tudo bem, então o que eu vou fazer? Em que horário?” Ele falou: “De manhã.” Eu falei: “Como vão aceitar uma mulher, uma marmanja dessas estudar de manhã? A não ser que seja uma universidade e você tem que cumprir aquele horário, de manhã até a tarde você está cobrindo ali uma grade de matérias; é muito diferente do que você voltar para o ensino fundamental para cair no médio, é completamente diferente.” Ele falou: “Vai dar certo. Vai à escola, conversa lá com a diretora.” [Diretora] que já era minha amiga, mas na época já não era ela mais; era uma nova diretora, uma mulher incrível, que se tornou uma grande mentora na minha vida.
Falei para ela: “Preciso voltar a estudar. Os meus filhos estudam de manhã.” Inclusive todo mundo que estudava nessa mesma escola, que foi lançada lá atrás quando eu mudei… Foi para essa escola que eu tive que voltar, e as pessoas me viam descer com os meus filhos para a escola deles, que era no começo do bairro, não era a mesma. Eu tinha esse trajeto, passava em frente à escola que eu estudei e levava meus filhos na outra.
Volto eu, em algum momento da minha vida, paro na escola para me conectar de novo com a minha vida escolar. [Quando] chego lá [tem] uma nova diretora, uma nova mulher administrando aquilo. Expliquei para ela a situação; ela falou que já tinha até ouvido falar da minha história, que ficou muito feliz de saber que eu estava disposta a voltar. Falei para ela [que] só que tinha uma questão: eu tinha que voltar dentro do combinado com o meu marido, no período da manhã. [Perguntei] se eles podiam me receber porque eu não era mais uma adolescente, pré-adolescente; já era uma mulher, mãe de dois filhos, que inclusive levava os outros dois para a escola. Ela falou: “Não tem problema nenhum. A gente vai organizar aqui para te receber. Você vem amanhã?” Eu falei: “Tudo bem.”
Fui, Genivaldo, assim, toda cheia de medo, de vergonha. Tudo o que você imaginar estava posto sobre mim naquele dia, mas eu fui.
Cheguei na escola, já combinada com essa diretora, chamada Elizabeth Cota. Ela me mandou para a sala de aula. Quando eu cheguei na sala de aula, todo mundo correu para ver, porque na época… Enfim, não sei como é que funciona as escolas, o ensino médio hoje, mas fica aquela muvuca no corredor; toca a sirene, você fica ali boiando, conversando, mas quando tem alguma coisa nova, aquela muvuca do corredor começa a ficar interessante, tipo: “Entrou alguém novo dentro da sala de aula.” Ainda que a sirene não tenha tocado, a galera vai só para saber o que está rolando. Foi o que aconteceu.
As pessoas já tinham me visto passar porque eu levava meus filhos para a escola. Eu chego nesse corredor, vou para a sala indicada pela diretora, chego nessa sala, os alunos, que estavam no corredor fazendo hora, entram todos e sentam. Todo mundo se organizando, e eu sentada - entrei e sentei mais no fundo, todo mundo entrou junto e sentou. Eu falei: “Eita, já está começando mesmo. Já vai começar a aula, eles vieram porque eu entrei.” Começaram a me perguntar se eu era professora substituta, aí foi o caos para mim. Falei: “Pronto, deu ruim. Como assim professora substituta! Como é que eu vou contar para eles que eu sou mais uma aluna?” E detalhe, que é de extrema importância contar: eu não estava ali falando com adultos, eu não tinha ali amigos de uma faculdade; eu tinha coleguinhas. Eu, com 21 anos, em uma sala de oitava série, onde todo mundo tinha catorze anos, e eu já mãe, duas vezes mãe, então outra bagagem, uma outra mentalidade. Chego na classe, eles fazem esse movimento e ainda me perguntam se eu era professora substituta. Falei: “Pronto, eu não volto mais amanhã.” Morri de vergonha. Vou ter que contar, não, estou voltando e tudo mais”.
Vou te dizer, foi bem legal. Chegou o professor de História logo em seguida, explicou que eu era uma nova aluna. Ele conversou comigo, todo mundo pôde ouvir um pouco da conversa e entender que eu estava retornando, e todo mundo já tinha falado: “Mas eu vejo você descer com os seus filhos para a escola.” Todo mundo já sabia o movimento, mas não sabia que eu era ali mais uma aluna.
A partir daí a minha vida começou a mudar, porque foi nesse primeiro momento de volta para a sala de aula, onde eu me conectei com esses coleguinhas, que eu comecei as transformações dentro da escola, porque já era mãe, mais velha, mulher madura. Entrei em uma escola que estava com uma evasão escolar lá no alto; a Secretaria de Educação só tinha reclamação da escola onde eu estava, porque estava tendo muita briga, briga mesmo, de ter que mandar na época a Guarda Municipal para separar. Todo final de aula tinha que ter alguma viatura lá porque tinha brigas perigosas. A nossa escola não estava em um ranking legal na cidade.
Percebendo tudo e me colocando no lugar de mãe que já era, comecei a criar algumas atividades simples, bobas para… Contando para vocês: “Nossa, que coisa mais idiota”, mas funcionou. Era fazer com que aqueles adolescentes se movimentassem na hora do intervalo, entregando a eles algumas atividades básicas. Como a gente tinha o intervalo, no intervalo comecei a criar essas brincadeiras, tipo corrida do saco, do ovo, dança das cadeiras. Eles só precisavam se movimentar, e a cada final desses eventos, dessas ações, como a gente era de uma escola muito pobre, a gente tinha… Qual era o nosso desejo na hora do intervalo? Além de merendar era comprar salgado, porque a escola vendia salgados e pouquíssimas pessoas tinham dinheiro para comprar - coxinha, pastel, que uma senhora levava lá na porta. Eu conversei com a diretora, ela super apoiou.
Isso não foi do tipo “cheguei hoje e amanhã construí isso”, não. Entendendo todo esse cenário, tive a oportunidade de conversar com ela novamente. Falei: “Vamos fazer esse movimento.” Ela super topou. Falei: “Olha, a gente precisava de algumas prendas…” Como a escola permitia que algumas vendedoras de salgados passassem por lá, a escola começou a adquirir esses salgados, e quem ganhava essas movimentações na hora do recreio ganhava uma coxinha, porque era o nosso desejo de comprar uma coxinha saborosa da tia fulana, mas a gente não tinha grana.
Começou a ter fila de espera para quem ia brincar no próximo recreio. Nós tínhamos, na época, dez minutos de intervalo, chamado recreio, e depois desse sucesso, que foi um engajamento de toda a escola, de todo mundo querendo participar… Nisso a gente reativou uma rádio que já tinha, então a gente foi trazendo a galera que gostava mais do movimento, que gostava de se expressar de alguma forma, nem que seja através da música, e tinha a radinho, onde ela podia escolher a música, mandar a música, mandar recadinho. A gente fez tipo uma quermesse na hora do intervalo.
A diretora viu a importância de aumentar esse período de intervalo, para que mais pessoas participassem, e ela fez reuniões com os professores, reduziu um pouco a carga de aula, mas trazendo também essa molecada para o recreio e fazendo desse momento mais um ativo, para que a gente não perdesse na carga horária e ter que justificar para a Secretaria de Educação. A gente trouxe isso também como algumas pontuações e foi muito bom para a escola inteira.
No final das contas, fizemos sucesso na escola com essa movimentação. Diminuiu 97% a evasão escolar, subimos para o ranking de escola como referência na cidade, na Secretaria de Educação, porque a gente era pior, ninguém queria nem passar lá, só a gente que estava lá mesmo, não tinha para onde correr.
Conseguimos construir um jornal do bairro, pegando notícias locais, dividindo com as pessoas do nosso território - ou seja, éramos os personagens daquilo, então gerava interesse em ler aquele jornal impresso. E como essa diretora [durante] esse tempo todo que eu fiquei na escola era irmã do prefeito, então facilitava alguns acessos pra gente, como ele bancar o jornal, a veiculação do jornal; a gente não tinha dinheiro, mas ele botava para rodar ali os exemplares e a gente buscava as matérias. A gente juntava a galera do sétimo e oitavo anos para juntar as matérias na nossa comunidade, na nossa quebrada e trazer esses personagens. Quem é o Zé do Conserta Fogão. Lá tinha o Zé da Mula como lenda na nossa quebrada; todo mundo tinha medo, mas ele era uma cara bom. Trazer essas figuras, todo mundo queria.
A gente tinha tiragem uma vez por mês. Todo mundo ficava na expectativa de receber o jornalzinho, ver a sua foto, ter aquele espaço bem social. A gente pegou um jornal tipo Estado de Minas e fizemos igual, só que com a cara da nossa quebrada, da nossa comunidade e deu muito certo.
Começamos a subir de forma positiva, pontuar de forma positiva as nossas ações escolares, que permitiram que a gente criasse um projeto chamado Recreio Legal. Foi isso, começou com essas brincadeiras, porque até então não tínhamos muita expectativa além de tirar essa galera da ociosidade na hora do intervalo, a hora que tinha muita briga e gerava a briga para o final da aula. O intervalo era a hora das ameaças e no final da aula acontecia, então a gente conseguiu fazer com que de fato isso fosse encerrado. Avançamos, criamos o projeto Recreio Legal, que inclusive a gente pôde rodar em outras escolas que também estavam com o mesmo problema. Mas isso não [foi] só a Marciele; partiu de mim, mas esses meus coleguinhas também já estavam bem avançados, entenderam a importância do quanto estava fazendo diferença para escola e para a vida deles, e vieram juntos, junto com a Secretaria de Educação e a diretora que acreditou na gente. Começamos o movimento a partir daí e tomamos o nosso bairro, a nossa comunidade com essas ações positivas.
A partir daí, começou a despertar em mim todo um propósito social que eu nem fazia ideia do que era essa palavra - social, projetos sociais, ações sociais, não tinha nem ideia do que era isso, acho que nunca tinha nem lido isso. Eu estava fazendo alguma coisa que eu nem sabia o que era, que era uma ação social, esse movimento realmente fortalecedor para essa mudança atmosférica, territorial e do indivíduo. Fui embora e deu certo.
Chegou minha hora de sair da escola, tinha que seguir em outra para dar continuidade. Ali não tinha aquela sequência do [ensino] médio. Quando eu fui para o médio eu já fui para aquele rápido, EJA [Educação de Jovens e Adultos]; uma outra pegada, você faz em um ano, meio ano.
Fui orientada por essa diretora. Como eu disse, além de uma grande diretora, uma grande gestora na escola, foi uma grande apoiadora e ela é minha mentora para a vida. Até hoje a gente troca tudo, projetos a nível médio, pequeno e gigantes. Ela faz parte da minha vida em um processo que eu tenho com ela para a minha vida, em um momento de escuta, porque é uma mulher sábia.
Fui para esse movimento do EJA para avançar, tentar recuperar ali um pouco do tempo, já em um outro formato, um pouco mais desacelerado enquanto ideia de alguma ação, porque onde eu estava não existia a necessidade de replicar o que eu vim. Mas fui entendendo que era um processo de mais maturidade, onde eu precisava cuidar de mim, entender ali que agora era eu comigo mesma. Agora sim eu precisava focar em mim e avançar.
01:18:13
P/1 - E nesse período Marciele, você já pensava em curso superior, você já pensava, você já tinha alguma ideia? “Quero fazer…” , ou “Quero fazer administração”? Você já tinha essa ideia na cabeça? Como isso foi se desenvolvendo?
R - Então, Genivaldo, eu não tinha. Eu não tinha porque eu não tinha desejo. Depois que eu saí da oitava com esse movimento do social e esse apoio, o meu desejo era só cumprir as etapas. “Agora eu preciso fazer isso, então beleza, deixa eu ir lá cumprir.” Acho que foi até por isso que eu decidi ir para o EJA, porque eu já estava querendo fechar essas etapas, que todo mundo dizia que a gente precisava ser alguma coisa nessa vida, e aí vou eu tentar ser alguma coisa nessa vida através do estudo.
Eu vou te dizer: não resolveu a minha vida, não foi um curso que eu amei, não foi um curso que eu me dediquei, não foi algo que “nossa, é o curso que eu escolhi para a minha vida”. Mentira, não foi, tanto é que quando eu comecei, nossa, foi muito desanimador. Fui cumprindo etapas, avançando os passos.
Comecei essa graduação, inclusive ela era um pouco… Era teleaula que tinha, a gente tinha que estar lá dentro na faculdade, da COC, mas tinha muita aula virtual com os outros professores já na época. Não sei se você conhece essa faculdade, acho que nem existe mais, chamada COC. Vieram com essa proposta de inovação, de ter o professor ali com você através de videoaula, e o professor com você na sala de aula, reforçando ali os pontos.
Mas nossa, eu cumpri tabela. Não cumpri um desejo, um propósito. E eu vou te dizer: tudo que eu aprendi com essa questão da administração fez com que eu me relacionasse, conhecesse outras pessoas, tivesse um pouquinho de uma outra mentalidade, mas para uma mentalidade de fato empreendedora, empresarial, dentro do que eu faço, não resolveu a minha vida. Não é algo que eu pinço ali um ponto, e diga “nossa, isso eu pratiquei lá e é importante que eu exerça isso aqui”. Mentira. Vim construindo tudo isso dentro de uma necessidade real que o universo vai trazendo pra gente, as nossas realidades, as frentes que a gente determina [para] de fato lutar, seguir. Para mim foi um cumprimento de etapas a graduação, mas não que trouxesse um significado de extrema importância para mim, como hoje ela não é um fator fundamental para que permita que eu tenha acesso, ou esteja em lugares onde eu precisaria estar por ser graduada. Não mesmo.
01:21:20
P/1 - Entrando então um pouquinho na sua vida profissional, quais foram os seus primeiros passos profissionais, e como isso foi acontecendo?
R - Os meus passos profissionais foram sempre empreendedores, dentro de uma necessidade que eu dividi aqui com vocês, uma necessidade de sobrevivência. Na época, além da sobrevivência, todo mundo falava que a gente tinha que estudar e ser alguém na vida, então eu estava no meio desse processo. Não tinha finalizado nada, mas precisava fazer dinheiro de alguma forma. Mesmo vindo de dois casamentos, sendo o segundo com um período maior, isso fez com que eu tivesse tempo para pensar em determinadas possibilidades que não ser só uma dona de casa, até porque esse meu segundo marido já era muito mais apoiador para a realização de sonhos.
Fui empreender no básico, vendendo. Vendi roupas de dez reais; esse movimento na época, de lojas de dez reais começou a sair em Minas, acho que no Brasil todo. Empreendi junto com o meu ex-marido no ramo de sorveteria, essas máquinas de sorvete expresso na cidade de Ouro Preto; empreendi também com um telepizza que a gente montou na nossa casa.
Isso tudo que eu estou te falando deu certo no comecinho; em menos de um ano deu errado. Tivemos que fechar, tivemos que entregar. Não avançamos, como muitos outros empreendedores; só [tínhamos] o desejo de empreender, mas sem conhecimento, sem grana, sem fluxo ali para manter, ou seja, sem uma organização, um planejamento, um business plan, zero. Só o desejo de fazer alguma coisa acreditando que você vai ganhar dinheiro - pelo contrário, você ganha uma grande de uma dívida, sem gestão nenhuma. Foi o que aconteceu comigo, por no mínimo quatro vezes eu quebrei.
Quando de fato eu entendi que ia me dar bem empreendendo, e foi o que aconteceu, foi no ramo de estética, de beleza. Eu abri um salão - na verdade um segundo salão. O primeiro foi com a minha irmã apenas, e ela era ali administradora de tudo que ela tinha uma expertise, cuidando de cabelo. Eu estava começando na área de estética para desbravar e ver possibilidades de ganho apenas, não por um desejo também, mas para experimentar, e não vingamos, não; logo em seguida, coisa de uns dois anos depois eu saí do negócio com ela. Ela ficou sozinha mantendo o salão.
Depois apareceu uma potencial sócia, que propôs para a gente retomar o salão e ficarmos as três juntas, cada uma com uma frente: uma cabeleireira, eu [na] estética e a outra era manicure, a que chegou. Aí a gente monta de novo um salão e começou a dar certo. Foi quando de fato a gente parou a nossa vida. Depois de quatro quebradeiras terríveis, tirando de onde não tinha para fazer virar, veio a possibilidade de investir de forma organizada - com pouca grana, mas com outra visão, de ter um espaço diferenciado na nossa quebrada, que é um lugar ainda muito simples, mas de muita referência e expressão. Hoje é gigante, o maior bairro, referência por vários comércios que se tem, mas na época a gente teve inclusive que construir essa imagem, e aí construímos um espaço legal, verdadeiramente planejado, tanto na área de finanças como também na parte estética, e deu super certo. Aí sim foi o momento onde eu posso falar com você que eu empreendi, ganhei dinheiro, e decidi abrir mão, sair desse lugar para ir para outro espaço, porque eu já não estava satisfeita com aquilo.
Eu cheguei nesse estado, nesse empreendimento junto com minha sócia e a minha irmã. “Estou realizada. Eu precisava chegar até aqui para ver que dá certo quando a gente de fato faz tudo organizadinho, como todo mundo fala, abre um negócio bem organizado.” De fato deu certo porque fluiu. Nisso o meu ex-marido ajudava muito, um pouco nessa gestão macro, e fizemos tudo muito direitinho.
Eu me dei por satisfeita porque eu comecei a ter assim… Para você ter ideia, a gente recebia clientes que vinham do centro da cidade. Cidade pequena tem isso, a mulher do prefeito, a mulher dona do laboratório, elas começaram a nos procurar porque ouviram falar do nosso espaço físico. Na verdade, era muito além do que aquele lugar podia proporcionar e a gente estava com um espaço legal, diferenciado e tal, todo mundo ouvindo comentar. “Quem são essas três pretas que estão fazendo um movimento nas Cabanas, no salão chamado Charme?” - a gente colocou o nome do salão de Charme - “E que está dando super certo?”
Na época, a gente utilizava muito da ferramenta do Facebook, nos potencializou pra caramba, e aí a gente se tornou um pouquinho conhecida no centro. Todas as socialites, as mulheres mais ricas subiam o morro para ser atendidas por nós, e todas elas passavam pelos três processos, cabelo, estética e unha. Conheciam a gente, começaram a se relacionar com a gente. Nós nos tornamos referência, ganhamos dinheiro, todas as três, e eu me dei por satisfeita porque fui entregando tudo o que eu queria, e com a certeza do tipo “eu preciso fazer isso dar certo, para ter certeza na minha vida que as coisas que a gente se dedica de forma verdadeira, e com um pouco de conhecimento flui”. E foi isso o que aconteceu, ganhei dinheiro.
Comecei a conversar com muitas mulheres que eu atendia na época, falando “poxa, a gente tem muita coisa para conversar depois desse atendimento”. Porque são quinze, vinte, trinta minutos de atendimento ali, coisa muito rápida, e mulher você já viu, quando junta em um salão você quer falar sobre tudo; às vezes você não quer nem ser atendida para fazer ali o seu serviço, só quer sentar e falar, a mulher não precisa fazer mais nada, e acontecia isso muito lá em Mariana. A gente falava assim: “Vamos fazer o seguinte? Depois que a gente terminar passa lá em casa e a gente continua a conversa, a gente toma um café”, e as coisas não aconteciam bem dessa forma. Eu falei: “Gente eu vou montar um evento, um café na minha casa, café mesmo, tipo café com prosa.” No final do atendimento a gente marcava uma vez na semana, aí a mulherada que quiser sentar pra gente conversar mais, dividir ali sobre tudo, sobre nada, as nossas decepções, os nossos sonhos, vai lá para a casa que a gente vai tomar um café com prosa.
Isso aconteceu, Genivaldo. Marquei o primeiro café depois desse sentimento de que eu precisava me conectar mais com essas mulheres, para ter mais um tempo maior de escuta, porque tinha alguns assuntos que eram de extrema importância, e eu não podia dar aquela importância naquele momento, aquela dedicação, e outras que precisavam apenas falar. Eu fui percebendo ao longo desses quatro anos no salão que era importante a gente se conectar, e elas toparam.
Foi indo, marquei o primeiro café. No primeiro estávamos dezessete mulheres, contando com as mulheres da minha casa - a minha mãe, a minha filha, a minha irmã e a minha neta. Na época eu já tinha até a minha neta. A mulherada topou. Falei: “Vamos conversar, vamos para casa. A gente vai fazer um café, você leva broa, você leva queijo”, coisa bem de mineiro. Eu tenho lá em Mariana uma varanda em casa, onde eu consegui colocar essas dezessete mulheres, e foi incrível o nosso primeiro café, foi emocionante. A gente se envolveu ali. [Foi] muita troca, momentos onde a gente compartilhou as nossas dores, as nossas fragilidades, mas também apontamos ali as nossas forças, isso no primeiro encontro. A gente saiu desse encontro muito tomada de emoção, com o desejo de marcar o próximo encontro, só que aí você já viu. “Vai rolar o próximo encontro, mas eu preciso trazer fulana de tal que tinha que estar aqui para ouvir, fulana tinha que estar aqui para compartilhar a história dela”, sabe essas coisas assim? E aconteceu. “Vamos fazer assim: o próximo café a gente marca para o mês que vem, cada uma traz mais três mulheres.”
E aí, Genivaldo, ao longo desse mês muitas mulheres ligavam, porque eu não tinha Whatsapp. Falavam assim: “Marciele, olha só. Eu sei que a gente só pode chamar três, mas ficou faltando fulana, depois eu lembrei dela, e ela está precisando de um momento desse também. Foi muito boa a nossa troca, a nossa conversa, e essa menina tem que estar lá. Eu posso chamar mais uma?” E foi bem coração de mãe. No final das contas, no nosso segundo café o negócio já tinha mais que triplicado, porque muitas levaram mais de três mulheres, e a varanda ficou tomada. “Uai, como assim?” Muitas mulheres.
Foi tudo muito rápido. A gente fez o primeiro café e postou no Facebook. Todo mundo queria entender que negócio era esse, que café era esse. A gente colocou foto de cada uma que estava lá, mostramos a mesa, foi bem legal. A gente conseguiu fazer um movimento muito agradável, a ponto de saltar os olhos de quem também precisava de um momento como esse; todas nós, mulheres, no fim das contas, precisamos disso.
No segundo encontro triplicou. A gente já tinha nesse segundo encontro identificado que tinha contadoras de história nesse grupo. Tinha ali diretora da Mary Kay, dessas diretoras que ganham os carros rosa, tinha ali terapeuta ocupacional, porque uma foi chamando a outra, tinha ali a dona do laboratório que é referência na cidade. Falei: “Gente, como é que essa mulherada veio parar aqui em casa, convidadas por outras só querendo tomar um café e se conectar?” Mas elas estavam lá, elas queriam alguma coisa; nem eu sabia o que eu ia entregar, além de uma conversa.
Marcamos o terceiro café. [Quando] o terceiro café acabou, não tinha mais espaço na varanda, juntou a galera um pouco mais para a sala. Foi uma professora, grande amiga minha, que na época era professora do meu filho mais novo e hoje é professora de libras. O meu filho mais novo é surdo, [foi] ela que ensinou a ele muita coisa de libras que ele sabe. Ela estava passando por um momento muito difícil e começando a empreender também lá na cidade com um espaço na casa dela; ela tem um jardim na casa dela e aluga para eventos, para festas diversas. Ouvindo alguns relatos… O que era aquele café, além de conversas? Nós sentávamos e algumas mulheres ali eram escolhidas para contar um pouco da sua história de vida, sua trajetória, de como começaram a empreender, ou porque não começaram ainda, mas têm um desejo… Enfim, a gente separava ali umas três histórias para durar um café de três, quatro horas, e todo mundo se envolvia com aquilo. Essa professora que chegou lá, a Adria, ficou tão envolvida com algumas histórias que ela ouviu que ela falou assim: “Olha, eu também me dou por satisfeita. Estou vendo que esse café tem sido tão bom para essas mulheres, a começar por mim, que é a minha primeira vez aqui. Eu estou com um negócio que eu abri agora, ele está com a agenda do final de semana já tomada” - ela começou o negócio dela também de forma muito positiva - “mas ao longo da semana ele está vazio. Se vocês quiserem fazer o próximo café lá na minha casa, eu cedo o espaço.”
E aquilo ali se tornou a nossa casa, fez com que gerasse verdadeiramente as Marianas [Mulheres], porque isso tudo que eu estou contando aconteceu em 2014, antes do rompimento da barragem. A gente se conectou nesses três eventos, nestes três cafés, e foi de forma muito especial, muito orgânica. Quando houve o rompimento da barragem a mulherada já sabia da gente, já queria entender porque tinha mulheres de negócios, empreendedoras lá e queriam se conectar, então virou um… Bom, aí eu já não tive mais controle da mulherada que chegava. Na hora que a Adria abriu a casa dela, foi a oportunidade que a gente teve de levar as outras que queriam participar para um espaço maior e fazer um evento maior, um café maior; tudo aconteceu na hora que ela cedeu o espaço.
Montamos o próximo evento e foi gigante, já tínhamos quase duzentas mulheres participando, e permitiu que a gente se tornasse de fato uma rede. Até então o nosso grupo, no primeiro, segundo e terceiro café, se chamava Mulheres que Inspiram, porque as nossas histórias estavam ali com o propósito de fortalecer e inspirar umas às outras, mas era só isso. Como eu te disse, eu não tinha plano nenhum, eu só queria me conectar com elas. Eu vi que aquilo ia virar, veio o rompimento da barragem e cresceu de forma assustadora. Fiquei até com medo de trazer decepção para essas mulheres, porque elas chegavam até mim com uma expectativa, do tipo: “O que é isso que está acontecendo na sua casa que eu fui convidada?” Eu falei: “Meu Deus!” Acho que nem eu sabia o que estava acontecendo e elas falavam assim: “Eu quero fazer parte disso.”
Quando houve o rompimento da barragem, em novembro, mudei o nome para Marianas Mulheres que Inspiram, pra gente trazer essa ideia de fato, a identidade das mulheres de Mariana, então nós éramos naquele momento mais uma Mariana sobrevivente de tudo aquilo que a gente passou. Veio um caos. Nossos maridos, namorados, enfim, desempregados, sem falar de várias outras mulheres que estavam na área também desempregadas. Mais de três mil desempregos em uma semana, a cidade com mais de três mil pessoas sem perspectiva nenhuma de retorno, e que demorou pra caramba até, mas muita gente desempregada. A mulherada, desesperada, começou a pensar em ações positivas empreendedoras, mas sem noção nenhuma.
Foi quando eu comecei a entender que todas essas mulheres já faziam algum movimento empreendedor, e aí a gente trouxe mulheres que já tinham habilidades em conhecimento técnico, informação também, mulheres formadas para apoiar outras mulheres, para estruturar algum negócio, ou estruturar o que já tinha, mas estava com medo de quebrar, de falir, de morrer o negócio. Fui montando essa rede, uma mulher apoiando a outra com conhecimento, com mobilização, com chamamento.
Para você ter ideia de uma forma um pouco mais breve e resumida do quanto [foi uma] estruturação de rede, houve o rompimento, crescemos de forma gigante, sem controle. Nós nos tornamos uma rede de mulheres. Começamos com dezessete, hoje somos mais de 1.600 mulheres envolvidas nessa rede. Mas quando houve o rompimento, nós fomos para um média de 450, seiscentas mulheres transitando nesses nossos eventos pontuais que a gente trouxe. A cada três meses a gente se unia.
Conseguimos aí… Na verdade, isso é recente. Nós conseguimos na pandemia um apoio, participamos de um edital organizado pelo movimento Bem Maior, através do Instituto Phi, que nos permitiu apresentar um projeto. A gente tinha um desejo de acelerar essas mulheres, ou seja, fazer dos negócios uma aceleradora dos negócios, e aí a gente conseguiu o aporte do Instituto Phi e conseguiu acelerar vários negócios. Várias mulheres cresceram, [isso] estruturou a vida delas; viramos a primeira aceleradora de negócios diversos do estado de Minas, porque é muita mulher e muito segmento. A gente está falando desde uma psicóloga que atendeu e teve que se modificar nesse período pandêmico on-line, se reestruturou e deu super certo, alavancou inclusive a receita, como a gente teve ali uma manicure que começou em casa e montou o negócio dela; se tornou além de uma manicure, ela agora é digital influencer, porque além do que ela faz fisicamente, ela vende o produto dela, ou os ensinamentos dela também on-line. A gente foi acelerando, até sem saber o que a gente estava fazendo, e aí o Instituto Phi entendeu a potência da mobilização. Mas antes de chegar o Instituto Phi na nossa mão… Chegou bem antes, o Instituto Phi veio no final de 2019. Antes a gente já estava conectada, entregando capacitações através do Sebrae, que se tornou também um grande parceiro, ouviu falar do nosso movimento e falou assim: “Gente, que movimento organizado de mulheres é esse que está acontecendo em Mariana? A gente quer entender.” E aí falou, tudo bem. Querem conhecer essas mulheres, então vamos lá.
Marcamos uma reunião, coisa de uma semana; falei: “Olha, vou juntar essa mulherada, apresentar para vocês, e vocês explicam pra gente como a gente consegue essa parceria, o que vocês tem para ofertar e o que a gente tem do lado de cá também.” Marcamos uma semana depois esse momento com o Sebrae. Eu já tinha inclusive estruturado esse mesmo movimento com uma Instituição financeira, que é a Secob, uma cooperativa, conectei as duas e falei: “Vamos aproveitar e apresentar todas essas mulheres que estão na rede.” Isso foi lá por 2018 que aconteceu. Eles falaram: “Tudo bem!”
Fechamos a reunião, levamos para a casa, para esse espaço que a professora cedeu, que se tornou a casa das Marianas; hoje lá é a nossa base, é o nosso QG. Levamos para lá mais de 370 mulheres. O Sebrae chegou lá sem expectativa nenhuma, porque o Sebrae a gente sabe bem, morre ali pelo quórum, faz entregas incríveis, mas no final das contas você não tem mobilização. Isso é muito triste, às vezes. Isso acontece muito aqui em Minas, em Mariana em específico tem temas muito importantes, mas no final você tem cinco pessoas. [Quando] chegaram lá tinha mais de 370 mulheres sedentas, querendo saber o que eles iam entregar, e a gente do lado de cá também: “Meu Deus, o que a gente vai poder entregar também como contrapartida, além do nosso interesse de sermos transformadas pelo conhecimento que o Sebrae tem?” Pra gente sempre foi uma instituição de extrema relevância nacional, que era importante chegar na nossa cidade a partir da gente. Não que já não estivesse estado, mas nunca apoiou nenhuma outra rede lá para fazer um movimento de capacitação máximo, isso nunca tinha acontecido, e eles que me procuraram. A gente se sentiu honrada por isso e aconteceu.
Chegaram lá, tivemos essa reunião, apresentamos essas mulheres. Resumo, Genivaldo: cada mulher que chegou lá empreendia já com CNPJ e outras sem CNPJ, ou seja, tínhamos ali empreendedoras e intra-empreendedoras que também não tinham nenhuma ideia, só tinham ali o desejo, e a gente foi trabalhando tudo isso. Apresentamos para o Sebrae e o Secob, e no final da reunião apresentaram a possibilidade de fazer uma validação com essas mulheres. Na verdade, a palavra nem é validação, mas era um diagnóstico com as mulheres que tinham interesse em contar um pouco dessa jornadas empreendedoras delas. Dessas 370 e poucas que estava lá - se eu não me engano a gente tem até um relatório, eu posso até te mandar - 340 e poucas sinalizaram positivamente que gostariam de receber a visita do Sebrae para passar por esse diagnóstico.
Foi lindo porque essas mulheres que já estavam nesse processo com a gente desde 2014 - lembra? Não sabiam quem eram, precisaram descobrir que já eram empreendedoras ou que queriam empreender e aí foi crescendo pra caramba - elas chegaram, participaram desse diagnóstico.
Foram mais de quatro meses de trabalho só do Sebrae com essas mulheres que se dispuseram. Fizeram um levantamento e somente essas 340 e poucas mulheres já impactavam na economia que estava quebrada, porque a gente estava parada por causa do rompimento da barragem. Elas já impactavam mais de três milhões e meio por mês, somente trezentas e poucas mulheres da nossa rede! Nem eu tinha ideia de que essa mulherada movimentava tanto dinheiro no seu negócio, ou com a sua ideia de forma a ser validada pelo Sebrae. Não é o que o Sebrae acha; o Sebrae investiga mesmo, não tem meio termo. Ele vai na veia e faz com que você abra as suas contas, o seu movimento para te ensinar, para te provocar, então elas que foram diagnosticadas e chanceladas pelo Sebrae.
Quando o Sebrae me chama para apontar esse diagnóstico, eles falam assim: “Mulher, a gente tem aqui uma potência, uma rede de mulheres que a gente precisa trabalhar mais.” Foi quando tudo foi despertando. Junto disso, eu já tinha uma Instituição financeira, que era a Secob, que eu convidei no dia para participar da reunião. Já saíram cadastrando todo mundo também, porque ninguém é bobo, e aí qual foi a proposta? Você está entrando em uma rede de mulheres, então a gente já sabe que a gente tem tudo de forma negativa para que nós mulheres não consigamos empréstimos, mesmo sendo mais adimplentes, então eu apresentei para eles uma proposta de pacotes e serviços que fossem completamente contrários a tudo que é pregado pra gente enquanto mulher. Quem era da nossa rede tinha um diferencial, taxas de juros diferenciadas para aquisição de qualquer empréstimo, qualquer produto. Ainda que [houvesse] mulheres negativadas, com um valor, é lógico, dentro de um risco mínimo para o banco, que elas pudessem ainda assim ter um aporte do banco para movimentar o seu negócio, que precisava de sobrevivência naquele momento, entendendo que somos mais adimplentes. Consegui negociar esse pacote com o Secob, que já era parceiro meu da CUFA na época. Eu já estava na CUFA, então foi uma negociação que eu fiz com a CUFA daqui de Belo Horizonte e consegui estender para a rede Mariana, deu super certo.
O Secob tem várias cooperadas, as Marianas, e o Sebrae, que conseguiu fazer esse diagnóstico e foi me orientando. A partir daí a gente tem o Sebrae como uma escola, porque tudo o que a gente precisa de informação, de entregar conhecimento, é só falar: “Sebrae, preciso hoje de uma mentoria tal. Preciso de uma mentoria financeira, de marketing.” Eles já trazem pra gente consultores para prestar esse serviço, então isso foi nos robustecendo, e o mais legal, nos robustecendo em conhecimento e nos trazendo para um espaço de extrema relevância para a nossa cidade, que não tinha absolutamente nada.
Comecei a fazer os eventos maiores. Eu precisava encaixar outras mulheres que estavam fora do processo de trezentos e poucas, por isso que foi crescendo. Quando a gente cresce, desenha esse projeto de uma aceleração e a gente tenta com o Instituto Phi, o primeiro ano não dá certo. A gente passou até por um voto popular, mas tinha ali até cinquenta instituições que receberiam, acho, um prêmio de oitenta mil reais e a gente ficou no número de setenta e poucas. Não avançamos, entramos de novo para o processo. Nesse primeiro momento, em que o instituto lança o edital, a gente entra e cumpre todas as etapas; na etapa final precisava da votação popular e a gente não teve um número específico para ficar entre as cinquenta primeiras. Ficamos lá depois dos setenta, beleza.
Veio a pandemia, aí todas as empresas queriam fazer um bem maior na vida de todo mundo. Como a gente ficou com relevância dentro da leitura dos jurados, segundo a pessoa que fez contato, ela falou assim: “Olha, a gente quer saber se vocês querem participar novamente do edital que a gente vai abrir, porém agora não vai ser necessário votação do público para uma aceitação à instituição, uma vez que vocês são cotadas.” Então vamos entrar. E a gente conseguiu emplacar.
Recebemos esse edital que nos permitiu essa aceleração, trazendo mulheres que já eram braços, que já apoiavam com conhecimento; conseguimos trazer o verdadeiro empoderamento. Eu acredito que ele só acontece por vias econômicas, ou seja, essas mulheres que já tinham ali suas habilidades, já estavam entregando seu conhecimento para outras mulheres; [era] mais que justo este edital pagar essas mulheres para que elas fossem de fato as capacitadoras de todo o projeto. Eu consegui remunerar todo o meu pelotão de elite, o núcleo duro, aí a gente, graças a Deus, decolou.
Passaram nesse processo de aceleração, seja através de mentoria, capacitação, atendimento psicológico, que aconteceu muito… A gente teve que trazer essa reestruturação para muitas empreendedoras, principalmente mães. No nosso relatório com o Instituto Phi, mais de 1600 mulheres passaram por esse processo em todos esses anos com a gente; isso nos permitiu de fato virar a chave e se tornar uma rede de mulheres relevante para a cidade de Mariana e região, e aí automaticamente as coisas agora vão acontecendo, a gente vai tomando uma proporção maior.
Fomos validadas no ano passado pelo Sebrae. Toda a nossa metodologia que a gente desenvolveu nessa pandemia e que deu super certo, a nível de acelerar essas mulheres, permite que a gente seja uma franquia. Fomos validados para pegar essa metodologia e apresentar. Por exemplo, a gente vai fazer isso agora, já [está] avançada a conversa com a cidade de [Conselheiro] Lafaiete, a Secob de lá quer uma sede das Marianas - ou seja, vai ter um piloto lá com tudo o que a gente entregou na nossa cidade. A gente monta uma nova rede lá, estrutura uma equipe, e a Secob vai ser uma patrocinadora disso até que elas consigam ser algo sustentável entre elas, da forma que a gente fez do lado de cá.
A gente vive nessa luta de busca de possibilidades, de avanços. Também agora fomos reconhecidas através de um concurso que eu participei apresentando o nosso trabalho, a nossa metodologia pelo, Bricks Woman. Eles fizeram até um segundo movimento do Bricks Woman, com a oportunidade de fortalecer essas mulheres lideranças que fizeram alguma ação nesse período de pandemia. A proposta é essa. O primeiro não foi com este fim de questão pandêmica, mas o segundo sim, foram projetos empreendedores de mulheres que causaram um impacto positivo na economia criativa e aí fomos indicadas - indicadas não, fomos selecionadas. Somos três brasileiras, quatro com uma pesquisadora em relação a alguma questão da covid que eu não me recordo exatamente, mas três projetos específicos voltados para mulher, ou seja, que passou impactando vidas de mulheres, e as Marianas foi uma das escolhidas. A premiação é… O nosso projeto foi reconhecido em nível internacional, através da embaixada da China que faz esse movimento, essa conexão. Vamos passar, se não me engano, de um a três meses na China, sendo monitoradas por lideranças internacionais para que a gente seja também validada como uma liderança internacional de rede de mulheres. Saiu o resultado, acho que faz mais ou menos um mês; agora que a gente pôde postar, depois que a China cumpriu todos os trâmites aqui com o governo também, e aí a gente está nessa vibe.
[Tem] tantas outras coisas acontecendo que não dá para dividir com vocês, se não a gente fica até seis horas aqui.
01:51:52
P/1 - Bom, então eu vou fazer uma pergunta dupla para você, já relacionada com o que você já estava falando, antes da gente entrar na questão da CUFA, que eu também quero saber um pouquinho. Primeiro em relação a covid. Como ficou a sua saúde mental durante esse período, e como é que ela está agora? E segundo, que também está relacionado com tudo isso que você estava falando. Quem é a sua rede de apoio? De apoio pessoal, para te manter de pé, para te dar apoio?
R - Ótima pergunta. No começo eu fiquei com muito medo. Como todas nós, tive perdas muito próximas. Perdi o meu padrasto, para você ter ideia, logo no começo; tínhamos praticamente dois meses do país paralisado, o caos estabelecido. Ele foi na cidade de Mariana o décimo a ser contaminado e morreu com 7 dias. Descobriu, já foi para o hospital, entubou e morreu.
Foi muito traumático tudo isso, porque aconteceu muito rápido, e naquele momento onde a gente estava com medo de um oi para uma pessoa fora, já estar contaminado e morrer. Tudo isso aconteceu nesse mesmo tempo, todo mundo em casa, fique em casa, não faça nada. Enfim, isso trouxe um caos muito grande para todo mundo, inclusive para mim. Imagina, já separada, provedora da minha casa, hoje com meu filho de catorze anos, o do meio que mora comigo, então eu tinha uma responsabilidade. Para além disso eu também tinha uma negócio antes da pandemia, um negócio em Ouro Preto, um restaurante, no qual 90% dos meus clientes eram da universidade de Ouro Preto, que também fechou, então eu tive que lidar com uma situação muito nova para mim, para o mundo inteiro, e administrar tudo isso. Administrar o medo, primeiro o medo de não dar conta de ser uma boa gestora de tudo isso, e sobretudo o medo comigo e com a minha família de morrer, de perder a vida para a doença.
Esse foi um momento muito difícil, que eu tive que buscar muito alto conhecimento, muita fé, sobretudo muita fé, Genivaldo. Eu confesso que me fortaleceu diariamente para que eu minimamente diminuísse um pouco essa minha insegurança, para que eu tivesse condições de avançar, parar para planejar, fazer um planejamento para me estruturar, pensar estratégias para que eu conseguisse avançar de forma correta, porque não era só a minha família. Como eu disse, eu tinha um negócio, tinha ali mais oito funcionários, ou seja, mais oito famílias que eu tinha que dar conta a nível de estrutura financeira, estrutura psicológica. A gente foi encerrar as atividades do negócio só oito meses depois, porque a pandemia não passava; até lá a gente conseguiu fazer esse movimento com o meu filho do meio, que administrava junto comigo. Então, o meu primeiro sentimento foi absurdamente de medo, de não dar conta, de que vou morrer, os meus vão morrer também, porque a idéia era: “O meu padrasto já foi, a minha mãe foi contaminada”, e aí junto com isso gerou a síndrome do pânico, aí veio depressão. Eu tive que passar por isso.
Junto disso, a minha filha de 25 anos surtou também de muito medo, entrou com síndrome do pânico, então, nossa, eu tive que lidar com tudo isso e foi muito difícil, porque a minha filha mais próxima de mim - ela também mora em Belo Horizonte, próxima a mim - teve que vir para a minha casa porque ela ficou meio que, sabe… A síndrome não permitia que ela tomasse banho sozinha, que ela se cuidasse, então eu tive que verdadeiramente ser mãe de novo da Natalie. Além de mãe da Natalie, eu era mãe do Daniel, que já estava lá, e da minha neta, que teve que vir também, então eu tive que voltar de novo àquilo que eu vivi lá atrás, com medo de não dar conta disso e não ser a melhor mãe do mundo. Sabe aquela mãe que protegeu lá atrás?
Eu estava fragilizada com tudo e desesperada, mas eu tive que me manter forte, então foi muito desesperador. Junto disso já tinha a rede Marianas acontecendo, as coisas… Ainda que de forma mais tranquila, mas a gente tinha planos, a gente tinha ações, a gente tinha mulheres, e aí todo mundo fica sentado. “Tá, e agora qual a resposta! O que a gente vai fazer?” Parou tudo! As atividades… Eu vou continuar nesse grupo? O grupo vai continuar existindo? O que vocês vão entregar? Muita coisa acontecendo, e junto disso o medo. Eu tive que buscar um autocontrole, inclusive para lidar um pouco.
Já respondendo a sua segunda pergunta, a nossa rede, como eu falei, tem vários segmentos, temos ali psicólogas, pedagogas e tudo mais, e elas foram fundamentais para esse processo na minha vida e na vida de muitas outras mulheres na rede. Eu tive sim que pedir apoio, ter esses momentos de conversa. Não cheguei a fazer sessões, mas às vezes eu precisava desabafar para ter novas perspectivas sobre o caos que estava estabelecido, e ela sempre trouxe muita clareza com relação à tranquilidade. “Veja tudo de forma mais tranquila para que você consiga entender que existem possibilidades lá na frente que não o desespero.” Foi um processo muito bom essa conversa minha, inclusive gostaria de citá-la aqui, a Denise Passos, que é uma mulher incrível, que me apoiou pra caramba.
Fora ela, que vem da rede, que vem desse propósito junto comigo de fortalecimento na vida de outras mulheres, eu também tive que buscar apoio para a minha família, mas eu vejo e vi que naquele momento eu era o alicerce. Não tenho pai, sou a filha mais velha; minha mãe perdeu o marido na época, ficou doente, eu também tive que apoiar. Os meus irmãos mais novos dependem muito de mim, a nível de orientação de irmã mais velha. Todos esperavam alguma coisa de mim, então eu também não podia esperar muito deles, mas só o fato da gente se unir… Principalmente depois que o meu padrasto faleceu e a minha mãe ficou doente; ela ficou doente por mais de um mês, a gente teve muito medo de ter que levar ela para o hospital, ser internada e acontecer tudo de novo. A gente foi segunrando até, a gente monitorava trinta horas [por dia], para ter certeza de que ela não precisava ser internada, mas as crises de pânico às vezes trazia pra gente o sentimento de que a gente devia levá-la. E nem era covid mais, já era o pânico, então eu precisava estar junto, mas nos fortaleceu enquanto família.
Vou te dizer que essa perda, essa fase que a gente passou, esse desespero que ficou estabelecido na minha casa, me fortaleceu enquanto mulher, mas sobretudo como família, a gente se uniu mais. A gente dialoga hoje muito mais, a gente fortalece muito mais uma à outra. Aquele momento foi fundamental, a gente ficar naquela bolha nossa ali, para fortalecer, se sentir seguros, um com o outro, para que a gente tivesse condições de apoiar o entorno. Aí sim, o entorno já era a nossa vida que a gente tinha que dar conta, que era o meu negócio, que era o meu filho que eu não tinha habilidade nenhuma e nem paciência com essa questão on-line, o mais novo que ainda tinha a questão de ser libras porque ele é surdo, então a gente tinha que ter um outro tratamento, a minha neta passado por isso, a minha filha também… No final das contas foi um auê, mas que trouxe uma estruturação emocional tão grande que hoje a gente fala com alegria. Inclusive a gente não perde mais, a gente tem por obrigação estar junto sempre. A gente faz qualquer movimento, vamos tomar um chá juntos na casa da minha filha, na casa da minha mãe. A gente está em BH? Beleza, vamos só passar ali em Mariana pra gente cumprir tabela desse processo familiar. Então foi muito fortalecedor também, não a ponto de buscar força em uma rede pessoal, não com a intenção de buscar força, mas no final das contas isso fortaleceu a todas nós, não só a mim.
02:01:08
P/1 - Bom, pra gente também não se estender bastante, eu queria que você comentasse um pouquinho sobre a CUFA. Como você conheceu, como você entrou, o que realmente você faz? Conta um pouco pra gente.
R - Ótimo. A CUFA vem na minha vida nesse período que eu resolvo mudar de chave lá no meu empreendimento, no salão que eu ganhei dinheiro, porque eu já tinha feito uma experiência no social que até então eu não sabia o que que era, na escola. Deu certo, eu me encantei com isso, vi o quão transformador é na vida das pessoas, e comecei a pesquisar na internet sobre isso - na internet não, no Facebook, e era só o Facebook que eu acessava. Quando eu colocava essa palavra de projetos sociais, sempre vinha a palavra CUFA, algumas ações no Rio Grande do Sul, e algumas ações que vinham de encontro com o meu coração - projetos de esporte, esses projetos de educação. Tinha um pouco a ver com o que eu tinha vivido quando eu voltei para a escola.
Eu falei: “Quero entender, eu quero conhecer.” Mandei uma carta gigante, Genivaldo, toda cheia de emoção, para o endereço que tinha lá. Eu vou te dizer, já estou na CUFA tem sete anos e até hoje ninguém me respondeu. Até falo isso quando a gente tem reunião geral. É um absurdo, gente, essa falta de comunicação é absurda. Mas foi bom porque aflorou em mim ali o desejo, me conectei depois dessa busca, aí eu vi que ela era uma das referências, uma instituição referência voltada para o social.
Eu falei: “Olha, eu quero conhecer um pouco mais, mas eu não sei como.” Não conseguia esse retorno, não tive esse retorno até hoje, mas no meio do caminho o meu ex-marido na época estava promovendo alguns eventos com o pai da minha neta, e aí a gente tinha que visitar alguns artistas em Belo Horizonte, na época artistas de MC e rappers, coisa que em Mariana não chegava, mas que fazia muito sucesso. As pessoas ouviam, mas eles não iam para a cidade fazer show. O meu ex-marido com o pai da minha neta, que é DJ, antenado nesse assunto, começaram a contratar essas pessoas e levar para a cidade, e aí a gente tinha que sair para buscar quem eram esses novos MCs.
A gente foi para Belo Horizonte. Uma das vezes que eu fui para Belo Horizonte conhecer novas bandas, para contratar para levar, meu ex-marido não foi e eu fui com o pai da minha neta, e ele falou assim: “A gente está indo para um show de rap e a gente vai contratar um MC e um rapper.” Beleza, o show tinha umas dez pessoas apresentando. Só que na hora que eu chego lá, a primeira vez que chego no lugar, um galpão todo escuro, bem preparado mesmo para a noite, para um evento, claro, eu dou de cara com um cara com a camisa escrito CUFA. Eu falei: “Não estou acreditando, aqui tem CUFA!”
Eu não sabia que em Belo Horizonte tinha CUFA, para mim era só no Rio Grande do Sul, porque sempre a referência caía lá. Eu falei: “Gente, como assim?” Eu fui cega nele, na hora que eu vi ele, só mirava o cara da camiseta escrito CUFA. Fui atrás dele, expliquei para ele o que eu tinha feito, a cartinha e tudo mais. Ele já me cortou: “Mas aqui em Belo Horizonte tem CUFA”. “Como assim tem CUFA? Toda a pesquisa que eu faço só dá Rio Grande do Sul, ninguém me respondeu.” Ele falou: “Inclusive, aqui no show hoje tem o presidente do estado, ele está aqui nesse show.” Falei: “Como assim? O presidente de uma instituição que parece ser tão famosa está em um show de rap!”
Eu não tinha nem ideia do que era CUFA. No final das contas, o que a CUFA é? É um movimento que começou com esse DNA do ativismo do rap, através da fala, da expressão, do movimento, do lugar, de falar potencializando esse lugar, esse território de favela, porque a CUFA é Central Única das Favelas, e é nesse nosso lugar onde tudo isso acontece. Eu não tinha nem ideia de que era isso, olha para você ver quão songa monga [eu era]. Eu só queria entender o que era a CUFA ali naquele momento.
Ele falou: “Olha, [o presidente] está aqui.” Falei: “Então ele pode me atender?” Aí ele foi falou assim: “Eu vou conversar com ele.” Ele foi lá, chamou esse presidente, voltou e falou: “Ele pode te atender. Só espera o show começar que eu vou te levar lá no camarim e você conversa com ele.” Nossa, eu me senti a pessoa mais importante, eu vou conversar com o presidente da instituição em um show aqui de rap, e assim foi.
Começou o show, eles me chamaram. [Quando] eu cheguei lá, Genivaldo, mais uma gafe. Olha como a gente é programado em não se ver em espaços de tudo, seja de poder, de diretoria, de nada disso, um presidente. Na hora que eu chego lá, um baita de um negão, mas um negão de quase dois metros de altura. Eu fiquei assustada. Falei: “Não, vocês estão de sacanagem, isso é mentira.” Pensei comigo: “Não, um preto desse tamanho não vai ser presidente de uma instituição que eu pesquiso? Nunca!” Olha a loucura, olha a minha ideia, a minha falta, realmente… Inclusive de identidade, ali. Na hora eu tinha que falar: “Uau, tem um preto aqui presidente dessa instituição!” Mas não, eu fiquei preocupada. Falei: “Gente, vai dar alguma coisa errada nessa conversa agora.”
Em resumo, ele me recebeu super bem. Contei para ele a história da escola, contei do movimento social a partir do recreio. Ele falou assim: “Nossa, menina! Vamos fazer o seguinte. A sua história é muito legal.” Ele foi muito gentil comigo. Ele já tinha o olhar macro, e eu contando para ele uma ponta de possibilidades lá na minha cidade. Ele falou: “Não dá pra gente continuar a conversa aqui. Eu me comprometo a ir no próximo final de semana à sua cidade e você vai me mostrar toda a sua quebrada.” Falou bem assim, e aí eu falei “ok, vou marcar”, mas sem expectativa nenhuma dele chegar lá no outro domingo.
E não é que ele chegou de manhã no domingo com a família inteira? Levou mais um cara que já estava com ele, que também era desse movimento da CUFA, que já executava ações em Belo Horizonte, e aí a gente rodou as cabanas inteiras, ou seja, a quebrada inteira. As outras periferias também são territórios completamente vulneráveis, que precisavam de ações bem positivas, e apresentei a ele tudo.Ele falou: “Olha, de fato você já é CUFA e não sabe.”
Ele me explicou tudo, como a CUFA funcionava. Ele falou: “No mês que vem vai ter um encontro nacional com todos os presidentes.” Eu não sabia que a CUFA já estava, na época… Quando eu a conheci, de 2014 para 2015, acho, ela estava quase chegando em todos os estados, faltavam mais ou menos uns quatro e eu não sabia. Ele falou assim: “Vai ter um encontro nacional. Todos os presidentes estaduais estarão lá. [No encontro, eles] apresentam os projetos que já estão rodando, que estão dando certo, e a gente desenha novos projetos para o ano” - ou seja, faz um planejamento com todo mundo. Isso acontece no Rio de Janeiro, onde é a sede, onde tudo começou, debaixo do viaduto de Madureira. Tem toda uma história do Celso Athayde, super ativista, junto com o MV Bill, a Nega Gizza, então tem toda uma história, ele me explicou tudo isso.
Ele falou: “Olha, vai estar todo mundo lá. Vai lá,é bom que as pessoas te conheçam, você conhece a CUFA e entende se de fato é isso que você quer se envolver.”
Fui para esse encontro. Fiquei extremamente envolvida no primeiro encontro. os projetos, nossa! Eu me senti assim, um nada perto do que eu contei da história da escola, porque eram projetos de muito impacto. Nada era menos de mil, cinco mil pessoas impactadas, jovens não sei das quantas que eram disso e que passaram a ser isso, sabe? Coisas assim. Eu falei: “Gente, isso existe? Eu não sabia que existia, eu não fazia ideia que o social era tão impactante na vida de uma pessoa!”
A partir daí, Genivaldo, me encantei, amei e não larguei mais, porque depois eu não saio mais da CUFA, eu só me envolvi ainda mais. Nesse primeiro encontro lá em Madureira com toda a apresentação, eu tive a oportunidade de contar a minha historinha perto de todas as grandes histórias que estavam lá. Mas o fundador da CUFA, o Celso Athayde, ele foi muito sábio em querer ouvir todos, inclusive a mim. Contei para ele um pouco desse processo que eu vivi em Mariana, e ele é muito de criticar as coisas a partir do que ele está discutindo com a gente, trazendo como um ponto fortalecedor para a instituição. Na hora ele falou assim: “Olha, menina, gostei muito de você. Mineira boa, está acompanhada com o Francis” - o Francis já era o presidente do estado na época - “e você tem tudo para dar certo. Agora a CUFA em Minas tem que decolar.”
[A CUFA de Minas] estava em uma nova fase porque vinha de uma outra gestão, e o Francis tinha assumido há pouco tempo também. Ele já era de movimentos sociais, então ele já tinha um pouco de estrada, e aí o Celso falou assim: “Vamos fazer o seguinte: assim que terminar aqui o nosso encontro, eu vou convocar algumas lideranças nacionais e a gente vai ter uma reunião separada para determinados alinhamentos de estados específicos. Minas eu espero que esteja junto.” Ele nos convidou no final desse evento, fomos para essa reunião em especial para ele apresentar a ideia do que ele queria para as próximas CUFAs, para os próximos anos. Ele falou assim: “Para os próximos anos vamos fazer o seguinte: é de extrema importância que cada CUFA tenha equidade de gênero enquanto coordenação, ou seja, presidência.” Nós temos uma nomenclatura na CUFA que o coordenador do estado é presidente estadual, então somos presidentes coordenadores da instituição e respondemos pelo estado; cada cidade tem um líder local, e cada favela também, então a gente responde por eles.
Ele falou assim: “Eu gostei dessa menina, Francis. A partir de hoje ela vai ser presidente estadual junto com você.” Assim, no primeiro dia na CUFA. Eu falei: “Uai, como assim?” Sem entender nada. “Meu Deus, o que que é isso?” [Estava] louca para aquilo tudo acabar e eu poder [falar] com o Francis para entender. “Gente, eu vou chegar e vou fazer o quê? Não tenho ideia de nada, estou lá em Mariana, não tenho apoio, não tenho nada e nem ninguém para um negócio tão gigante quanto era a CUFA. Como é que ele está me trazendo para uma presidência?” Imagina você, presidente? O máximo que você pensa [é que], a responsabilidade toda agora é nossa, mas eu vou me responsabilizar em cima do que eu nem sei o que é e estou entrando.
A CUFA é muito isso. Eu vou te dizer, a CUFA realmente capacita quem ela coloca lá. Eu não tinha expertise, eu não tinha conhecimento absolutamente nenhum sobre esse universo, e a partir desse momento que me deram a oportunidade de ser mais um quadro dentro da instituição no estado de Minas, eu fui crescendo junto com o Francis, que foi um grande apoiador. [Ele foi] me apresentando projetos, me ensinando a lidar com todos os projetos que a gente ia rodar, como funcionavam essas questões de verdadeiros impactos.
A gente precisava trazer para a favela, através desses jovens - e na base também, que sempre foi legal, eu sempre amei - projetos sociais de esporte, cultura, educação e outros tantos, mas a base realmente é empregabilidade e renda, fortalecer realmente a economia, que é o empoderamento que a gente falou sobre a questão da mulher. Não existe de fato um empoderamento se ele não passar por vias econômicas, ou seja, dentro da favela com a CUFA você é mais um projeto social, mais um passo ali do assistencialismo, mas eu não gero nenhum impacto a ponto de transformar a vida daquele jovem, daquela família, onde eu permito que ele tenha uma capacitação e gere o seu negócio, a sua renda, e que seja capaz de ser um multiplicador daquele conhecimento, do seu negócio e empregar outro morador de favela. Favela é isso, é uma família, é um círculo, então se eu tenho um negócio e eu consigo contratar, eu não vou lá no asfalto contratar alguém. Eu vou pegar o vizinho, pegar a fulana que está precisando, vou contratá-la.
A CUFA me ensinou muito isso, essa base, esse pavimento de empregabilidade e renda, que a gente fala. Realmente pensar na economia da base da pirâmide. Isso trouxe para mim um pouco de mais amor e compreensão de tudo, mas sobretudo entender o quanto é importante que toda base de empoderamento passe por uma oportunidade. Eu entrego a oportunidade e você de fato é transformado a partir daquilo que eu entreguei, e você entendeu que era de relevância para você. Eu te entrego ali as ferramentas, eu não entrego e abandono; eu te acompanho até você começar a caminhar. A CUFA é muito assim, esse espírito familiar não é só discurso. A gente de fato entrega, a gente acompanha; são esses líderes locais que eu te falei, de cada quebrada, de cada favela, de cada cidade, que tem esse acompanhamento com a família, com o empreendedor, aquele que pegou um curso, que está passando por um processo de validação com a gente, aquele que teve oportunidade de trabalhar ainda com CLT, mas indicado por nós, por uma grande instituição, como a gente tem Procter & Gamble, como a gente tem Fedex, como a gente tem Facebook, como a gente tem uma carteira gigante de parceiros - é difícil até eu citar aqui para você - que levam essa oportunidade de empregabilidade, de geração de renda através também de uma autonomia que não precisa ser fichada.
A gente traz a oportunidade porque traz um parceiro forte para o território que é potente - até porque é importante a gente falar que a favela é um espaço de extrema potência. Hoje a gente sabe que as favelas mobilizam mais de 39 bilhões por ano, então é muita coisa. A gente não está falando de um lugarzinho, a gente está falando de um lugar econômico, de um lugar de força, de resiliência, mas que produz o tempo todo e com a intenção dessa retroalimentação local, só robustece. Tanto é que grandes empresas vêm com a gente para esse território não para tentar a sorte, é porque sabem que ali tem grana. A gente não está falando de uma carência, a gente está falando de um lugar potente, de pessoas que consomem, que pagam sim as suas contas, que quando têm dinheiro descem lá no asfalto e compram o tênis de oitocentos, de mil reais, mas que também estão ali, favorecendo e fortalecendo a economia local, gerando renda, comprando lá dentro.
Por exemplo, nesse período de pandemia, nós impactamos mais de dezessete milhões de pessoas. Nós fizemos um movimento de compra de cesta básica de várias empresas. A empresa doa o voucher e a gente compra no comércio local, para que os comércios locais não morressem nessa pandemia. Estava todo mundo fadado à morte financeira, empresarial e física também, mas era importante que a gente entendesse como fazer um movimento fortalecedor nesse local, em que a gente poderia dar uma sobrevida para esses comerciantes locais, que sempre investiram nesse território. A gente também faz muito isso, fez muito isso nessa pandemia, e isso foi me ensinando bastante.
Quando eu conheço a CUFA com essa visão, hoje muito mais ampla do que naquele dia que eu encontrei com o negão naquele show de rap e não acreditei, e do nada eu fui nomeada, virei a parceira dele, presidente, eu me torno de fato uma liderança, uma empresária social com esses movimentos de impacto. Mas o maior movimento foi realmente interno, onde eu percebo em mim uma mulher melhor, uma mulher muito mais madura, uma mulher mais cheia de afeto, com o olhar realmente para o próximo, muito empática, mas sobretudo, muito genuína naquilo que eu entrego, naquilo que eu acredito quanto instituição - não só na CUFA, mas também nas Marianas. Você tem uma rede muito grande ligada em você o tempo todo, então se você não é de verdade, se você não é genuíno, se você de fato não tem essa entrega, você morre no meio do caminho.
São duas redes hoje que estão decolando pelo resultado que nós temos. Não é um resultado unilateral, é um resultado único, de todos nós, então isso me fortalece ainda mais, fortalece todos nós, fortalece de fato a pauta que a gente quer trazer, que é o empoderamento, o fortalecimento, o reconhecimento e a valorização do indivíduo, do território, independentemente de onde ele esteja, seja na quebrada lá de Mariana, nas cabanas, seja nas favelas daqui de Minas Gerais. O que permitiu que todo esse impacto, Genivaldo - só para finalizar - todo esse trabalho que a gente vem entregando, que eu, enquanto mobilizadora social também venho entregando, permitiu também que me levasse para outros estados, trazendo um pouco dos resultados que a gente vem desenvolvendo em Minas Gerais. Eu também sou coordenadora em nível nacional de alguns projetos de maior impacto da CUFA, quando alguns estados vão abrir novos projetos onde a gente tem que ter aquele impacto maior. Por exemplo, a Taça das Favelas, que é a nossa menina dos olhos, onde a gente impacta mais de 96 mil jovens só no Rio de Janeiro. Eu sou acionada para tocar esses projetos, para fazer abertura ou para acompanhamento, para entender um pouco melhor, para que aquele líder local se sinta seguro e faça a entrega o que os outros estados já fazem com excelência - não que não façam, mas uma vez que nós somos rede, nós temos por obrigação fortalecer os nossos.
A CUFA permitiu que eu saísse verdadeiramente de Mariana, verdadeiramente; hoje eu moro em Belo Horizonte porque a CUFA me provocou, era importante eu sair daquele lugar que até então era seguro, era cômodo para mim e desbravar a minha presidência no estado. Eu não vou ser a melhor presidente, mas é um outro espaço em Mariana. Eu tinha que vir para cá, para a capital, e faz quase cinco anos que eu estou em Belo Horizonte, porque a CUFA me provocou e, claro, me deu a oportunidade, essa condição de fato de estar lá para desbravar. E aí ganhei Minas, ganhei o Brasil, ganhei o mundo, porque também eu viajo o mundo para apresentar a CUFA, com o trabalho que a gente vem desenvolvendo.
02:21:38
P/1 - Antes da gente ir para as perguntas finais, eu vou te fazer uma pergunta que tem tudo a ver com isso que a gente está conversando agora. Como você enxerga o mercado de trabalho para a população preta no Brasil?
R - Olha, hoje eu enxergo de forma muito mais positiva, com boas expectativas a trazer para esse recorte, se permite, também do feminino, né? A gente tem se posicionado de forma bem diferente, entendendo a importância de estar nesses lugares. Muitas vezes, e até mesmo antes de conhecer a CUFA, eu tinha dificuldade de me ver nesse espaço. Como eu te falei, quando eu conheci o Francis eu não o reconheci naquele espaço. Como assim um presidente de uma instituição tão relevante [é] preto? Eu precisava me ver e hoje a gente está se vendo mais, ou seja, já houve uma construção aí, uma briga, uma luta, que veio bem antes de mim - é importante reconhecer isso. Esse novo lugar, esse novo momento, tem feito com que eu olhe para frente, olhe para algumas grandes empresas e veja outras pretas, outras Marcieles. A gente traz sempre exemplos, Maju [Coutinho] e tantas outras, a Tabata, e tantas outras pretas que são referência pra gente enquanto mulher nesses espaços de mídia altíssima, de grandes empresas, de extrema relevância, então eu vejo com bom olhar, com uma expectativa muito boa.
Eu olho, por exemplo, para a minha neta e tenho certeza, convicção ali que ela vai ser uma CEO top, uma preta diferenciada e ela não vai aceitar menos que isso, então isso aumenta nossas expectativas. É lógico que a gente tem uma realidade que é de luta, ela não pode cessar, senão seremos engolidas novamente, mas eu também tenho visto avanços, porque esse avanço tem feito com que a gente se discuta mais - ainda que não com muito respeito, infelizmente - mas que ocupemos e estamos ocupando um pouco mais desses lugares, muitas vezes não por momentos que foram oportunizados, mas sim conquistados. Então é manter a nossa luta Genivaldo, manter a luta e ter a certeza de que é um espaço que a gente quer estar. Tem que ter essa clareza: onde eu quero estar, mulher preta, homem preto? Lá? Então é lá que você vai estar, lógico, debaixo de toda essa construção que a gente já sabe, mas é de extrema importância que a gente tenha esse desejo, essa clareza. Claro, não vem fácil, é difícil pra caramba, a gente vai ter que lutar mesmo, resistir o tempo todo e sobretudo pensar de fato que existe ali uma possibilidade a partir do momento. Não me deu oportunidade? Não tem problema, eu vou cavar essa oportunidade para estar aqui hoje.
02:24:54
P/1 - Então vamos para as perguntas finais da entrevista, elas são um pouco mais pessoal tá. Primeiramente, o que é mais importante para você hoje em dia?
R - Minha família.
02:25:13
P/1 - Qual legado você gostaria de deixar? Qual legado você acha que a sua vivência, que a sua experiência deixa para as pessoas?
R - Genivaldo, legado hoje para mim eu defino como coragem.
02:25:32
P/1 - Tem alguma pergunta, alguma coisa que a gente não abordou nessa conversa e você gostaria de comentar?
R - Não, acredito que falamos sobre tudo. Passamos por uma grande história que mexeu até comigo, confesso. Emocionada estou, emocionada fiquei, trouxe vários momentos de extrema importância e que reforçaram muita coisa na minha vida, inclusive, a importância de seguir essa caminhada. Eu só tenho que agradecer pelo convite.
02:26:07
P/1 - E qual a importância você dá, como você enxerga a importância da diversidade no mercado de trabalho?
R - Eu enxergo a importância da representatividade. É importante que eu me veja nesses espaços, é importante que eu veja as minhas filhas, as minhas netas nesses espaços, no geral, não só nesse recorte feminino. Eu vejo que sempre existe essa importância, está posto, mas eu preciso me ver, eu preciso me reconhecer, eu preciso entender que é possível que outros tantos de nós estejam nesse lugar que é de conquista, ele não é dado. A gente vive desde sempre realmente sabendo que são espaços ocupados, então que a gente não desanime nessa luta, que a gente não perca a nossa resiliência e que continuemos ocupando esses espaços que infelizmente não são oportunizados.
02:27:24
P/1 - Então vamos para a última pergunta. Como foi para você contar a sua história pra gente?
R - Nossa, foi incrível, superou todas as minhas expectativas. Eu confesso que fiquei meio que insegura: “Meu Deus, o que é tudo isso? Estão mexendo tanto assim dentro de mim, essas perguntas provocativas…” Desde o começo do nosso papo, para mim foi muito bom, me provocou demais. Reforçou muita coisa em mim, como eu disse, me trouxe para um lugar mostrando para mim mesma o quanto é importante que a gente seja forte, apesar de tudo. Seja forte, porque cada um de fato tem a sua história, e a sua história é linda. É necessário às vezes você ter essa oportunidade de olhar pra trás e ver o quanto construímos até aqui, e foi muita coisa, foi coisa pra caramba, a ponto de deixar legado, então eu entendo que para mim foi uma experiência única.
Eu gostaria inclusive de deixar aqui, cara, faz isso sempre, com muito mais pessoas. Não sei, tira assim o resto dos seus vinte anos só fazendo isso com outras pessoas assim, normais como eu, que tenham suas histórias que marcaram outras tantas histórias. Parabéns, eu super amei, super recomendo. Já vou falar para todo mundo, vocês estão de parabéns, mandaram muito bem com essa proposta da gente poder mexer um pouquinho aqui na nossa vida e trazer os pontos, não só a nossa fragilidade, mas também uma compreensão do quão fortes nos tornamos, cheios de coragem - inclusive para vir aqui contar a nossa história precisa de coragem. Foi muito bom, gratidão, adorei.
02:29:34
P/1 - Bom, pessoalmente eu também fiquei muito emocionado com as coisas que você disse, com a sua história. Eu agradeço muito pessoalmente também pelo Museu da Pessoa, por você ter aceitado conversar com a gente hoje.
R - Eu que agradeço, Genivaldo. Foi um prazer enorme e gratidão por esse convite!