Conteúdos:
Quem nasce com pai José
E com uma mãe Maria
Não vem ao mundo ao acaso,
Não é matéria vazia,
É gente predestinada
A transformar noite em dia.
Lagoa do Santo Antônio,
Terra bela, hospitaleira;
Lá que nasceu Benedita,
Na vida uma “buscadeira”,
Exemplo em Paracatu,
Na boa terra mineira.
Benedita nasceu perto
Da igrejinha da lagoa,
Seu pai, Zé, um rezador,
Ergueu ao céu uma loa
E Deus do céu, que ouve tudo,
Mandou uma chuva boa.
Sua mãe era Maria
Como tantas nessa vida,
Hospital não existia,
Benedita foi parida
Em casa, e por mãos bondosa
Duma parteira acolhida.
Quem nasce com pai José
E com uma mãe Maria
Não vem ao mundo ao acaso,
Não é matéria vazia,
É gente predestinada
A transformar noite em dia.
Benedita é uma destas,
Abençoada no nome;
Não conheceu a fartura,
Contudo não passou fome,
Pois quem nasce na pobreza
Se não trabalha não come.
Seu irmão mais velho era
Apegado à irmãzinha
E sempre dizia aos pais:
“Ela é a minha santinha”,
Definindo o apelido,
Pois outro ainda não tinha.
O pai trabalhava fora
No serviço de alugado.
A mãe vivia doente,
Sem o amparo almejado.
É por isso que Santinha
Cedo pegou no pesado.
Com oito anos de idade,
Labutava no fogão,
Como gata borralheira,
Mexendo no caldeirão,
Sobre caixotes, ficando
Com “canela de carvão”.
Pegava lenha na mata,
Sem medo e sem alvoroço,
Mas por causa disso hoje
Sente dores no pescoço,
Mesmo assim, não esmorece,
Nem pensa em largar o osso.
Com onze anos chegou
Com uma carga pesada,
Sentindo dores no ombro,
Aos pais não quis dizer nada,
Mesmo sangrando e sofrendo,
Continuou a jornada.
O fato é que ainda hoje,
Sente dores no local;
Mesmo assim, ela se orgulha
Não precisar de hospital,
E conta que seus irmãos
Não tiveram sorte igual.
Recorda ainda do tempo
Em que tocava no engenho
Os bois pra moer a cana,
Demonstrando muito empenho.
Se alguém pergunta, ela diz:
“Ó que saudades que eu tenho!”
O pai trabalhava fora,
Mas fazia plantação
Na pouca terra que tinha
De milho, arroz e feijão,
Vendendo uma parte para
O povo da região.
Lembra das festas de Santos:
Da Senhora da Abadia,
Nossa Senhora Santana,
A Mãe da Virgem Maria,
Celebradas nas novenas
Com festejos todo dia.
No caso das duas santas,
O festejo é a novena,
Já Santo Antônio de Pádua
É festejado em trezena,
Ou seja, por treze dias,
Pois a fé não se apequena.
As folias do Divino,
Com rezas e imperador,
Folias de Santos Reis
Em honra do Salvador
E dos reis magos Gaspar,
Baltazar e Melquior.
Por falar em Santo Antônio,
Sua grande devoção
Começa com a chegada
De estranhos à região:
Eram senhores baianos,
Vindos desse estado irmão.
Mil setecentos e cinco,
Segundo dona Santinha,
É quando começa tudo:
Gente da terra vizinha
Finca ali sua bandeira,
Fugindo à sorte mesquinha.
Todos vieram de barco,
Depois de longa jornada,
Mas o percurso restante
Foi feito na caminhada,
Indo à serra da Caieira,
Uma gruta é avistada.
Foi por Antônio Fonseca
Da Silva o grupo guiado;
Na gruta, veem uma imagem
De um personagem sagrado:
Santo Antônio, padroeiro,
No mundo inteiro afamado.
Foi construída uma igreja
Para abrigar a imagem,
Um pouco longe da gruta,
Mas foi perdida a viagem,
Pois o santo deu no pé,
Recusando a homenagem.
Buscaram desesperados
Pela imagem do seu santo,
Até que foram à lapa
E estava no mesmo canto
Em que fora descoberto,
Sendo motivo de espanto.
Mesmo assim, não desistiram,
Por três vezes conduzindo
O santo para essa igreja
E Santo Antônio fugindo,
Como se dissesse: Não!
E o povo não o ouvindo.
Até que a terceira vez,
Quando o povo procurou
Santo Antônio nessa lapa,
Uma pedra desabou,
Vedando a entrada da gruta,
E a teimosia acabou.
Fizeram outra imagem
Sem haver mais pandemônio,
Dedicado ao mesmo santo
Devotado ao matrimônio
E, por isso, o local chama
Lagoa de Santo Antônio.
Mas nem só de santo e vela
Vivia a povoação.
Dona Santinha nos conta
Das noites de diversão,
Dos bailes e dos pagodes
Em tempos que longe vão.
Às festas, ela só ia,
Pela mãe acompanhada.
Mocinha que fosse só
Terminava malfalada.
Nesse ponto, aquela época
Era bastante atrasada.
Levar namorado em casa,
Nem pensar, essa era a lei,
Mas dona Santinha conta:
“Meu namorado eu levei
Depois que uma irmã minha
Também levou, a imitei!”
O ocorre que aquela irmã
Era mais nova que ela,
Nove anos, por sinal;
Santinha não deu mais trela
Para as normas e levou
Lá o namorado dela.
A janela dividia
O namoro deles dois.
A mãe olhando a irmã,
E já dando nome aos bois,
Disse: “Ou casa ou vai embora,
Não tem antes, nem depois!”
Sua irmã então casou
Com aquele namorado.
Nessa época os mais jovens
Tinham de comer dobrado.
Namorou e não casou
Logo ficava marcado.
Certa vez, uma mulher
Dona de loja chegou
Para contratar Santinha,
Logo que o galo cantou,
Esperou até as oito
E para seu pai falou:
“Seu José, eu vim hoje aqui
Para buscar sua filha”.
Seu pai, em vez de dizer:
“Isso é uma maravilha!”,
Arranjou tanto defeito
Que quase ela sai da trilha.
Disse: “Santinha é nervosa!
Para serviço não presta!”
A mulher então falou:
“Gente nervosa é honesta!”
Ela antão foi contratada,
Depois de achada essa fresta.
Havia loja e açougue
E ela então foi trabalhar,
Retalhando porco para
Mais tarde poder salgar;
Fazia tudo descalça
Para os calçados poupar.
Isso por conta do sal
Aplicado no toucinho,
Que estragaria o calçado.
Então, com muito jeitinho,
Com pés no chão trabalhava
Naquele viver mesquinho.
Isso porque no trabalho
Era bem pouco apurado.
Santinha só possuía
Aquele par de calçado;
Guardava-o para outras horas
Longe do piso salgado.
Teve de sair de casa,
Nesse tempo uma aventura;
Senhora de seu destino,
Foi trabalhar com costura.
E o que contarei agora
Até parece loucura.
Pois Benedita “Santinha”,
Ao trabalho dedicada,
Costurando dez camisas
Numa única madrugada,
Deixou a cidade inteira
De seus dons admirada.
Quando ocorreu em sessenta,
A fundação de Brasília,
Santinha imaginou logo,
Mesmo sem casa ou mobília,
ir morar nessa cidade,
Longe de sua família.
Para que ela não deixasse
A terra, por garantia,
Um tio que a estimava,
Para ela ofertaria
40 mil pra sobrinha
Comprar a mercearia.
O seu patrão a chamou
Para uma sociedade,
Mas ela então refugou,
Dizendo não ter vontade,
Pois queria tocar só
Aquela propriedade.
Santinha, que nunca teve
Medo de encarar borralho,
Fez bar e mercearia,
Sem vacilo ou “atrapalho”,
Lembrando que, desde cedo,
Foi seu destino o trabalho.
Quando resolver casar,
Foi para o pai e falou.
E na Presbiteriana,
Os seus laços confirmou,
Tendo a benção da família,
Com Antônio se casou.
Mas como ela era católica,
Encetou nova peleja
E disse para o marido,
Como boa sertaneja:
“Nós vamos casar de novo,
Mas agora em minha igreja”.
Dos seis filhos do casal,
Apenas três se “criaram”;
Iara, Kelly e Donato,
Que aos seus pais sempre honraram.
Mas antes da calmaria,
Muitas lutas enfrentaram.
Lembrança triste ela tem
De quando foi assaltada;
Donato levou um tiro,
Mas teve a vida poupada
Com o filho e o esposo,
Foi no banheiro trancada.
Conseguiram sair vivos
Daquele quadro de horror,
Quando os bandidos levaram
Tudo o que tinha valor;
Donato recuperou-se
E hoje é vereador.
Hoje ela diz não ter sonhos,
Porém pensou em mudar
Por conta da violência,
Mas Antônio quis ficar;
Então espera que a paz
Um dia volte a reinar.
Ainda lembra dos tempos
Em que havia mutirão,
Todos trabalhando juntos
Em sua povoação
Quando o rito era seguido
Com respeito e devoção.
Sua história não termina,
Pois é saga, é infinita;
Quem vai a Paracatu
Deve a ela uma visita.
Peço já no fim da linha:
Um viva para Santinha,
Que também é Benedita!
Biografias
MARCO HAURÉLIO
Escritor, professor e divulgador das tradições populares, tem mais de 50 títulos publicados, a maior parte dedicada à literatura de cordel, gênero que conheceu na infância, passada na Ponta da Serra, sertão baiano, onde nasceu. Dedica-se ainda à recolha, estudo e salvaguarda dos gêneros da tradição oral (contos, lendas, poesia), tendo publicados vários livros, como Contos folclóricos brasileiros, Vozes da tradição e Contos encantados do Brasil. Vários de seus livros foram selecionados pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) para o Catálogo da Feira do Livro Bolonha, Itália, e receberam distinções como os selos Seleção Cátedra-Unesco (PUC-Rio) e Altamente Recomendável (FNLIJ). Finalista do Prêmio Jabuti em 2017, em sua bibliografia destacam-se ainda Meus romances de cordel, O circo das formas, Tristão e Isolda em Cordel, A jornada heroica de Maria e Contos e fábulas do Brasil. Ministra cursos sobre cordel, cultura popular, mitologia e contos de fadas em espaços os mais diversos. Também é curador da mostra Encontro com o Cordel.
REGINA DROZINA
Nascida em Formosa D’Oeste estado do Paraná, começou a fazer xilogravura em 2000 e é autodidata. Também faz bonecos e esculturas em madeira e outros materiais. Já participou de várias exposições, ilustrou livros, folhetos de cordel, CDs e catálogos. Tem suas obras no Museu de Artes de Londrina-PR, na Casa da Xilogravura de Campos do Jordão-SP, no Centro Cultural de Guararema e em acervos particulares.
Realização
Ficha Técnica:
Autoria: Marco Haurélio
Curadoria: Museu da Pessoa
Xilogravura: Regina Drozina
Revisão e Consultoria: Marco Haurélio
Diagramação e Impressão: Gráfica e Editora Cinelândia
Benedita Gonçalves da Silva, apelidada pelo irmão de Santinha, nasceu na Lagoa de Santo Antônio, município de Paracatu, e desde cedo precisou trabalhar para ajudar os pais na lida, em casa e na roça. Cedo foi trabalhar no comércio, contra a vontade do pai, tornando-se proprietária de uma venda. É uma grande contadora de histórias, como a lenda da imagem andarilha de Santo Antônio, encontrada numa lapa (gruta) e que se recusava a ficar na igreja.