O que lembro, sou

O QUE LEMBRO, SOU

1
Venho perante vocês
E a musa da eloquência
Calíope, da bela voz
Associada à ciência
Pedir luz, sabedoria
Falar da minha essência.

2
A jornada começou
Com meus pais e meus avós
Unidos em matrimônio
Vieram antes de nós
Formaram uma só carne
Descendentes logo após.

3
Desde cedo agricultores
Da terra tiram sustento
Do trabalho a fortaleza
Para seguir a contento
Suas vidas em família
Buscando discernimento.


4
Muitas vezes se mudaram
Quase sempre sem mobílias
Nos caminhos e paragens
Entre lutas e vigílias
Na vida se encontraram
Pai e mãe, suas famílias.

5
Da união, primeira filha
Vim o mundo habitar
No Pernambuco nasci,
No Ceará vim morar,
Mãe e pai semeadores,
O campo é meu lugar.

6
O nome Francisca Sandra,
Que ganhei no batizado,
Me causava desencanto,
Mas ressignificado,
Descobrira finalmente,
Em proteção mergulhado.

7
Pai e avô combinaram,
Santo invocado primeiro.
Pelo pai veio Francisca,
E Sandra por derradeiro,
Avô deu logo depois,
A proteção por inteiro.

8
Morei em casa de taipa,
Casa de alpendre antiga.
Chegou irmãs e irmãos,
Prima, primo e amiga.
Brincadeiras no terreiro,
Palco de toda cantiga.

9
Diversão, roça, escola,
Era rotina cumprida,
Entre um caminho e outro,
Fé e devoção vivida,
Em busca de melhoria
Sustento certo na vida.

10
O melhor a relembrar,
É o que vivenciei,
Aos pés de jatobazeiros,
Lugar que amo e amei,
Encontro, forró e reza.
Tudo lá presenciei.

11
Trabalho comunitário,
Arrancho para cigano,
Sair e chegar da feira,
O judas de todo ano,
Os encontros de namoro,
As conversas, cada plano.


12
De uma coisa estou certa,
Eu carrego na lembrança,
Desses pés de jatobás,
É o tempo da infância.
As quadrilhas e os forrós,
Eu e toda a vizinhança!

13
Numa carta de ABC,
Abri porta pra leitura.
Números em tabuada,
Matemática futura.
Professora me tornei,
Tive acesso à cultura.

14
Outros caminhos trilhei
Esposa e educadora.
Ser mãe me fez aprender,
Que sou na vida amadora.
Em meu esposo encontrei,
Amizade duradoura.
15
No cariri cearense
Cresci junto com os meus,
Onde aprendi que na vida,
Não se deve dar adeus,
À luta de cada dia.
E sim, construir com os seus.

16
Nos terreiros da infância,
Riquezas eu aprendi.
Muitos causos escutei,
Na escuta os revivi.
E nos caminhos narrados
Outros sonhos percorri.

17
Conto histórias que ouvi,
Espalhadas pelo vento,
Muitas delas de mulheres,
Sem tempo para lamento,
Na luta cotidiana,
Cheias de contentamento.

18
Imersa a relembrar sempre
O que traz minha trajetória,
Fui ao tempo de menina
E os acendi na memória.
Trago em conto meu legado,
Sou contadora de história.


Sou.
Lembro.
O que lembro sou.
Lembranças.
Somos.

Filha de agricultores do Nordeste brasileiro, mais precisamente do sertão pernambucano. Vim com a família para o Cariri ainda novinha e minha trajetória de vida foi se firmando em uma casa antiga, de alpendre, larga e comprida, rodeada de frondosas árvores, na zona rural de Brejo Santo, em um sítio chamado Compra Fiado. Fui e voltei mais de uma vez ao lugar onde nasci, do lado de lá da Chapada do Araripe, para poder fincar minhas raízes em terras cearenses.
Cresci em um lugar onde o cotidiano das pessoas é repleto de atividades coletivas. Desse cotidiano comunitário e desse lugar, carrego vivências, saberes, sabores, afetos e doces lembranças. Amargas também, porque a vida é assim. Somos o que carregamos das experiências, das canções e das cantigas que embalaram as brincâncias e rodas de histórias contadas e ouvidas nos terreiros bem varridos, à luz de candeeiros ou à luz da lua; da fé e da crença trazida dos novenários, das renovações, das promessas para santos e das festividades religiosas; da alegria e animação dos forrós e das festas juninas.
Tudo isso que lembro acontecia e ainda acontece, abrigado embaixo de dezesseis jatobazeiros que ali cresceram e que a tudo testemunham, afetando a vida de seus viventes e pulsando bem no meio do coração do lugar e nas memórias que guardamos. É dessa paisagem, com cheiro de terra e frescor do balanço das folhas dos pés de jatobás, que trago lembranças e a certeza de que o que lembro, sou.

Francisca Sandra de Sousa
Brejo Santo-Ceará

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