Conteúdos:
Foi à terra onde nasceu,
Levou os livros pra lá;
Pro interior da Bahia,
São José do Paiaiá.
Se o livro muda a pessoa,
A cidade mudará.
Personagem como esse
Nenhum autor criaria,
Pois tem vidas que parecem
Nascidas da poesia;
Geraldo é natural
Do interior da Bahia.
A falta de luz elétrica
Trazia era diversão;
Sob a luz do candeeiro
Vinham vizinho e irmão
Ao redor do fogo, tinha
Os causos de assombração!
Mas não vivia de histórias
E de brincar com baralho;
Pelos sete, oito anos,
Da preguiça, era espantalho,
Pois às cinco da manhã,
Já começava o trabalho.
Se bem cedo levantava,
Não muito tarde ele deita;
Plantava milho e feijão,
Fazia também colheita,
Tira o leite da vaca
E o carro de boi ajeita.
Ele nem imaginava
Que o livro dava asa,
Que sua curiosidade
Ia brilhar como brasa;
Foi ele alfabetizado
Cantando dentro de casa.
Porém foi numa escolinha
Que o Geraldo estudou,
Ao decorar três poemas,
Foi ali e declamou
E assim o primeiro livro
O menino conquistou.
O livro em sua cidade
Era uma posse bem rara,
Que seria sua paixão,
O seu tesão, sua tara,
Mas viajou pro sudeste
Metido num pau de arara.
Cruzando estradas de barro,
Sob um calor do cão,
Viagem não foi pequena,
Treze dias de duração;
De noite armava rede
Debaixo do caminhão.
E Geraldo então chegou
A essa grande cidade;
Tudo lhe trouxe surpresa
Na nova realidade.
Encantou-lhe a biblioteca
Imensa, a Mário de Andrade.
E no mundo do trabalho,
Começou a sua sina.
Foi trabalhar com limpeza,
De manhã era faxina.
Á noite ele era porteiro
Sonhando com medicina.
Rapaz, será que dormia?
Pois, além de trabalhar
Na faxina e portaria
E ainda querer estudar,
Achou um curso de tarde
De escritório auxiliar.
Ele ainda se lembrava
Do que sua mãe dizia:
Ser doutor era besteira
Para um pobre da Bahia,
Mas mesmo sendo porteiro
Do sonho não desistia.
Entrou para um supletivo
E logo foi reprovado,
Mas ele tentou de novo,
Dessa vez foi aprovado,
E o vestibular da USP
Logo iria ser prestado.
Prestou o vestibular,
Não deu certo, reprovou;
Persistiu mais uma vez,
Novamente não passou.
Não é filme americano…
Medicina não rolou
Lágrimas da frustração
Nem iriam correr mais
O seu sonho de estudar
Não deixaria pra trás;
Então viu a inscrição
Pra línguas orientais.
Assim se concretizou
O seu sonho de estudar;
Se inscreveu para o Chinês,
Tinha chance de passar;
Foi o único inscrito:
Passa em primeiro lugar.
Olhe como acontecia
A sua aula de Chinês:
Falava-se nessa língua
E traduzia no inglês.
Geraldo ficava olhando
E só falava o… mudez.
Estourava a ditadura
Destroçando o Brasil.
Um tempo de repressão
Civil, viu e não ouviu;
E aí, teve uma escola:
Movimento estudantil
Frequentou foi pouca aula
Sem entender coisa alguma;
De passeata e protesto
Sua vida se avoluma,
Lutando pelos direitos
Pra que a ditadura suma.
E pro curso de História
Conseguiu a transferência.
Pra poder se aprofundar,
Foi tomando consciência.
Envolver-se com política
Também foi a consequência.
Mas durante aquela época
Foi em manifestação,
Ele acabou conhecendo
As tristezas da prisão,
Taxado de arruaceiro
Conheceu a repressão.
Ali, fechado na cela,
Sentindo as trevas da terra,
Colocaram gravações
Onde uma pessoa berra,
Ouvindo ali muitos gritos
Onde a tortura se encerra.
No dia em que saiu
Viu Ustra com um rapaz
Queriam lhe dar “ajuda”:
Por volta de dois reais…
“Grana de torturador
É pacto com Satanás”.
Depois ele fez mestrado,
Também virou professor,
Geraldo nunca esqueceu
De seu verdadeiro amor:
Os livros que ele ajuntara,
Joias de alto valor.
E era muito, muito livro
Que pela casa esparrama;
Só faltava era usar
As folhas como pijama,
Cobriam mesas, armários,
Também debaixo da cama.
Tinha livro sobre línguas,
História, pedagogia,
Os clássicos do romance,
A nata da poesia,
Se fosse abrir um armário,
Algum livro ali caía.
Os livros da sua casa,
Lidos sem tirar soneca,
Dava a vida inteirinha
Sem nem ir jogar peteca,
Pra que ler tudo sozinho?
Montou uma biblioteca.
Foi à terra onde nasceu,
Levou os livros pra lá;
Pro interior da Bahia,
São José do Paiaiá.
Se o livro muda a pessoa,
A cidade mudará.
Teve até uma fofoca
De cotovelos alados:
Que os livros de Geraldo
Eram só livros roubados!
Pra você ver: fake news
Eram atos praticados.
Em vez de lhe agradecer,
Foram tirar seu sossego:
“Os livros que tu trouxeste,
Não vai ler nem o morcego”
Por que não abre uma fábrica
Pra aumentar o emprego?”
A mulher que falou isso
Tinha caroço na mente,
Mas como a biblioteca
Conseguiu ir para frente,
Ela virou aliada
Lutou com unha e dente.
Foi chegando doação
De tudo quanto era canto,
Isso pra comunidade
Foi um tremendo espanto;
Pareceu chegar na roça
Algum divino encanto.
Sessenta e cinco mil livros
De Geraldo era oriundo;
É o que trouxe pra Bahia
Um tesouro tão profundo:
A maior biblioteca
Na área rural nesse mundo.
Ficha Técnica:
Autoria: Jonas Samaúma
Curadoria: Museu da Pessoa
Xilogravura: Artur Soar
Designer da Logo: Mariana Afonso
Diagramação: Cordelaria Castro
Impressão: Gráfica e Editora Cinelândia
Revisão e Consultoria: José Santos e Marco Haurélio
Jonas Samaúma é contador de histórias, rezador, educador ambiental e escreve livros desde criança, tendo publicado 6 livros e 2 cordéis: “Ganesha” e “Lula Livre – O Dia Em Que Chico César Libertou o Brasil”. Aprendeu a arte de cordelizar na íntima convivência com seu pai José Santos e no período que morou com o mestre do cordel Manoel Inácio do Nascimento no Ciclovida, sertão do Ceará. É criador do Poetarot e Contarot de Histórias e um dos criadores do Programa Vidas Indígenas no Museu da Pessoa. Para conhecer o trabalho do autor siga o instagram @jonasamauma ou escreva para o email: jonas.samauma@gmail.com
Artur Soar é baiano nascido em Salvador, descendente direto de gravadores de pedra da Chapada Diamantina. É amante da cultura popular e além de gravador é músico, compositor, capoeira e poeta. Conheceu a arte vendo seu pai entalhando pedras ardósia, e suas aventuras com a gravura começaram nos primeiros anos em que viveu em Lençóis-BA. Integrou diversas exposições coletivas na Bahia e teve sua primeira exposição individual internacional em Brighton-UK (2019).
Participou e ganhou prêmios pelo Brasil, como o prêmio IBEMA de Gravura em Curitiba-PR (2015); exposição de 30 anos do Museu Casa da Xilogravura – Campos do Jordão-SP (2017) e o concurso de Artes Plásticas do Goethe Institut – Porto Alegre-RS (2019). O reconhecimento nacional do seu trabalho rendeu a indicação para ser professor de Xilogravura do maior e mais célebre atelier gráfico da Bahia: oficina do Museu de Arte Moderna da Bahia.
Realização
Geraldo Moreira Prado nasceu na Fazenda Brejo Grande, município de Nova Soure, Bahia, em 1940. Migrou para São Paulo, como o personagem do poema Pau de Arara do Norte, de Patativa do Assaré, gravado por Luiz Gonzaga como A Triste Partida. Mas Geraldo não se curvou à fatalidade: ingressou na USP, tornou-se historiador e, de volta à Bahia, criou a maior biblioteca rural do mundo, localizada em Paiaiá.