Conteúdos:
Cleone Santos viveu
Para a insubmissão,
Foi contra o patriarcado,
Contra a discriminação.
Luta de classe pulsava
Bombeando o coração.
Quem traz consigo o afã
De buscar libertação,
Não importa quantas vezes
A vida lhe disser não,
Manterá acesa a chama
Pondo luz na escuridão.
Sabe que o sonho é direito
De quem não pôde escolher,
Também que sonhar transforma
E impulsiona o viver.
Por isso alarga horizontes,
Pois o seu lema é Vencer!
Faz parte do pensamento
Que Cleone alimentava,
Em todos os movimentos
Onde essa mulher passava,
Quem estivesse caído
Dava a mão e levantava.
Seja no sindicalismo
Sonhando com um novo dia,
Seja em busca de um abrigo
Na luta por moradia,
Fez história e se firmou
Para o que ainda viria.
Mais uma vez posta à prova,
Levada pelo momento,
Vislumbrando mais recursos
Que garantisse o sustento,
Mantém firme toda garra
Trazida do movimento.
Cerca de dezoito anos
Pareceu andar perdida,
Vivendo com tantas outras
No submundo da vida,
Mas ganhou experiência
E empreendeu nova lida.
Apontando algum caminho
A quem ali precisava,
Apesar de nele imersa
Aquele mundo estudava…
Sair e jamais voltar
Cada dia ela pensava.
Foi nessa situação
Onde ela foi entender
Como que o patriarcado
É capaz de reverter
Todo mal que faz, em culpa
De quem já vive a sofrer.
Não lhe foi um tempo fácil,
Teve muito que lutar
Por ser mãe-solo e ainda
Da família camuflar
Em qual ofício atuava
Para a casa sustentar.
Mesmo assim ergue a cabeça
Sabendo que a luta é sua,
Não aceita porta-voz
Da verdade nua e crua,
De quem vive a laborar
Em cada esquina de rua.
É na Marcha das Mulheres
Que ressurge a liderança
Por um tempo “camuflada”
Como quem anda, mas cansa,
Depois se empodera e segue
Com mais garra e confiança.
Nessa nova militância
Despertou alguns olhares,
Curiosos ou de escárnio
Chegaram-lhe aos “milhares”,
Mas a firmeza na luta
Levou-a a outros lugares.
Foi trabalhar com mulheres
Que desde a escravização,
Exploradas por seus donos,
Vão pra prostituição,
Sofrendo em cada despejo
Pela higienização.
Daí o Parque da Luz
Tornar-se a referência,
Reduto dessas mulheres
E ponto de confluência.
Cabia ação que levasse
Acolhida e consciência.
Buscar políticas públicas
Era a real intenção,
Só matar a fome física
Dando um pedaço de pão,
É ação que perpetua
Esta vil situação.
Foi com a “Bicicloteca”
Incentivando-as a ler,
A isso juntou depois
Uma “Tarde de Lazer” ,
Até que surgiu a ONG
Para melhor acolher.
Foram quinhentas mulheres
Ali beneficiadas,
Levantando a autoestima
Mantendo-as bem-informadas,
E as pequenas vitórias
Sendo enfim, comemoradas.
Dali saem cuidadoras,
Assistente social,
Também empreendedoras
No setor artesanal,
Com parcerias de vendas
Do seu produto final.
Uma mulher que mostrou
Ter fibra e sabedoria,
Exímia conhecedora
Da história e do dia a dia,
Se ela pudesse escrever
Em versos assim diria:
“Ser mulher é carregar
Um boi e mais dois pianos
Todo dia, sem descanso,
Sem direção e sem planos;
Soma a isso o desrespeito
Que só lhe traz desenganos.
Pense então na mulher negra
De quem tudo foi tirado.
Sem escola, sem saúde,
Sem um cantinho adequado
Que abrigue a si e aos seus —
Todo o direito negado
Por vezes, como saída,
Busca a prostituição
Que marca profundamente
Sua existência e, então,
Fica incrustada em sua alma,
Auto estigmatização.
Pois essa função sufoca,
Apesar de dar dinheiro,
É sempre estar vulnerável
Como se num atoleiro,
Cada dia se afundando,
Vida afora, o tempo inteiro.
Sonhar, quem dera pudesse…
Mas a dura realidade
Faz com que se torne cética
De outra possibilidade
Sendo mãe, tia ou avó,
Não importando a idade.
Porém sonhar é direito
De quem não pôde escolher
Que rota trilhar na vida
Pra poder sobreviver,
Por isso é essencial
Que alguém possa lhe acolher
Ali não tem coitadinha
Nem quem queira piedade.
Lá estão as criaturas
A quem a sociedade
Virou as costas negando
Qualquer oportunidade.
Por isso nunca aceitei
Alguém por elas falar,
Nem creio nesse discurso
Que deve legalizar,
Bem sei, que a situação
Com isso vai piorar.
Reflita só um pouquinho:
Quem quer uma profissão
Que não dá nenhum orgulho,
Mas, sim, discriminação?
A quem tal lei favorece?
A “rua” , é certo que não.
Ali é uma condição,
Não é lugar de destaque,
É momento transitório
De quem sofreu algum baque,
Tornar isso profissão
É um cuidado de araque.
Como sempre, os bordéis ganham,
Preserva o patriarcado.
Quem atua lá na rua
Não terá bom resultado,
Vai sofrer perseguição
Por quem sente assegurado”
Sua garra e militância
Rendeu-lhe muita conquista
Na busca por moradia
E como sindicalista,
Mas onde fincou raízes
Foi no front feminista.
Foi rebelde, insubmissa,
Muito justa e solidária
Que buscava construir
Uma vida igualitária.
Enfim, uma fortaleza
E revolucionária!
Não dispensava, na folga,
Tomar uma cervejinha,
Receber em sua casa
Quem amava e lhe convinha,
Ouvir música raiz,
Assim ela se entretinha.
Quem leu a vida e os livros
Foi capaz de registrar
Em Trajetórias de Vida
É possível observar,
Quanto Mulheres da Luz,
Pôde a história mudar.
Cleone Santos viveu
Para a insubmissão,
Foi contra o patriarcado,
Contra a discriminação.
Luta de classe pulsava
Bombeando o coração.
Sua existência entrelaça
Com a sua militância,
Não dá para separar,
Viveu sempre em vigilância
Para exigir os direitos
Nunca quis medir distância.
Com quem quer que conviveu
Deixou muito ensinamento
Ela era luta e era colo,
Era toda acolhimento;
Quem duvidar busque e ouça,
Há muito depoimento.
Em dois mil e vinte e três
Fez a sua despedida,
Partindo pra eternidade
Deixando aqui sua lida,
Mas também a sua história
Para mirar, ser seguida.
Alguém que levou a vida
Buscando libertação,
Mesmo com pouca saúde
Manteve a preocupação
E, num leito de hospital,
Viu dentre seu pessoal
A quem passar o bastão.
Ficha Técnica
Autoria: Maria Nilza Dias Pereira
Curadoria: Museu da Pessoa
Xilogravura: Maércio Siqueira
Diagramação: Claudia Letícia de Souza Pinto
Impressão: Gráfica e Editora Cinelândia
Revisão e Consultoria: Marco Haurélio
Maria Nilza Dias Pereira, mais conhecida como Nilza Dias, nasceu em Guarujá, São Paulo, e foi criada na cidade de Poções, interior baiano. Filha de nordestinos, na infância e juventude, bebeu na fonte da cultura local em suas mais variadas manifestações, com destaque para a literatura de cordel. Radicada na Grande São Paulo desde 1996, é graduada em Pedagogia e Letras e professora da rede pública. Como autora participou das coletâneas Visão Poética 2020 e Intenções Poéticas, além de outras antologias. Como cordelista, tem diversas publicações, entre elas Multidão Solitária, Luas de Mulher, A Lenda da Cachorra Helena e A Viúva e o Juiz. É autora, ainda, de uma versão rimada do romance Orgulho e Preconceito, de Jane Austen (Editora Florear) e de uma adaptação do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, para a coleção Clássicos em Cordel (NovaAlexandria), no prelo.
Maércio Siqueira nasceu em Santana do Cariri (CE), mas mora em Crato, no mesmo estado desde 1983. Graduado em Letras (2001), iniciou-se na xilogravura em 1999. Depois de um intervalo sem se dedicar a essa arte, a partir de 2006 voltou agravar, estudando junto a Carlos Henrique as técnicas que esse artista desenvolveu. Em 2007, participou de uma exposição coletiva “Incisão”, no Centro Cultural Banco do Nordeste- Cariri. Juazeiro do Norte (CE). Sua primeira exposição individual foi Impressão de Mundos, 2008, no Sesc-Crato. Foi presidente da Academia dos Cordelistas do Crato em 2009. Atualmente cursa Mestrado em Filosofia, em João Pessoa. Ilustrou vários livros, dentre os quais O Tribunal da Floresta (de Klévisson Viana), A Volta a o Mundo em Oitenta Dias em Cordel (de PedroMonteiro), Codel do Pequeno Principe (de Stélio Torquato) e a caixa temática 10 Cordéis Nota 10 (de Marco Haurélio).
Realização
Cleone dos Santos (1957-2023) nasceu em Juiz de Fora (MG), mas migrou para Diadema, onde se envolveu com a luta sindical e com o Movimento de Moradia. Depois de trabalhar em lojas do Bom Retiro, ao final de um casamento abusivo, acabou na rua, em situação de prostituição. Passou 18 anos nas ruas do centro de São Paulo. Conheceu a irmã Regina, freira que se dedicava à luta em favor de mulheres oprimidas e marginalizadas, e, juntas, fundaram o coletivo Mulheres da Luz, organização não governamental voltada à promoção da dignidade das companheiras em situação de prostituição.