Conteúdos:
No Cunha ou Paracatu
Duvido quem não conhece
Dona Benzinha, a mulher
Que a região enobrece
Porque da sua jornada
O povo jamais lhe esquece.
Para quem passou a vida
Fazendo vida emergir,
Eu arrisco essa homenagem,
Se assim me permitir:
Dona Benzinha, parteira,
Faça meu verso fluir!
Ao longo do seu viver,
Trouxe muita vida à luz,
Não obstante o trabalho
Que nunca viu como cruz,
Aos noventa e sete anos
O seu legado reluz.
Rememorando vivências,
É possível registrar
Que, nos tempos de criança,
Teve direito a brincar
Com seus amigos e amigas
Onde podiam criar.
Boneca de pano era
Personagens das histórias;
Inda lhe brota um sorriso
Quando puxa essas memórias.
Brincar figura na lista
Das suas muitas vitórias.
Sendo momentos gostosos,
Guarda tudo registrado:
Se juntava a vizinhança
Para fazer “cozinhado”.
Era ali que as bonecas
Ganhavam seu batizado.
Cozinhar, compartilhar
O alimento recebido,
Aos rapazinhos, mocinhas,
Era muito divertido;
De fundo, a simplicidade
É quem dava o colorido.
No ir e vir das lembranças
A escola contagia.
Apesar dos poucos anos,
Trouxeram-lhe serventia:
O pouquinho apreendido
Muito lhe serve hoje em dia.
Recorda da professora
De muita capacidade
Que ensinava com afinco,
Com firmeza e com bondade;
Hoje, dá nome à escola
Daquela comunidade.
Mais tarde, ao chegar da escola,
Uma longa caminhada,
Estando de volta à casa
A lida era retomada:
Cozinhar, lavar, passar
Manter a casa arrumada.
Levar comida na roça
E lanche aos companheiros,
Que eram os trabalhadores,
Costumes bem brasileiros:
Alimentar esse povo
Constava dos seus roteiros.
Cuidar da horta e do gado,
Fazer queijo, requeijão,
Lavar roupa, moer cana,
Fazer farinha e sabão,
Às vezes até doente
Segurava esse bastão.
Aí a falta da mãe
Batia um pouco mais forte;
Tão cedo de si levada
Pelo capricho da morte.
Se a tivesse consigo,
Certeza, tinha outra sorte
Dela, lembra sua luta
Na casa e na plantação,
Criando filhos, cuidando,
Dando carinho e atenção,
Como se fosse uma sina
Da mulher na região.
Sina que também foi sua,
Pois como mulher herdou;
Nunca rejeitou serviço,
Desde cedo trabalhou;
Também criou suas filhas,
Pelo que muito lutou.
Do pai tem suas memórias
Que era bom açougueiro,
Servindo a comunidade
Do seu jeito costumeiro,
Mas sua melhor lembrança
Era do homem festeiro.
E entre as recordações
Do seu pai nessa bagagem
Mantém vivos os ensaios,
Como se, numa viagem,
Ainda o vê chefiando
A festa de Caretagem.
Com barracões que ocupavam
Desde o fundo até a frente
Da casa onde moravam
Para caber toda a gente:
Os foliões, convidados,
Quem estivesse presente.
A Caretagem é um misto
De culturas variadas
As de matriz africana
Dão o tom, mas são mescladas
Pelas matrizes católicas
Nela muito bem-marcadas.
Em casa os preparativos,
Ensaio, planejamento,
O violão e a sanfona,
Animando o ajuntamento,
Mas na igreja da Lagoa
Se dava o encerramento.
Com levantada do mastro
E missa para fechar
Aquela festividade
E o povo se dispersar,
Pois a Caretagem tinha
Um ano pra retornar.
A vida tem o seu curso
Que por alguém é traçado:
Festas na comunidade;
Surge alguém interessado,
Foram olhares se cruzado
E os dois puseram agrado.
Veio o pedido do moço,
Logo a família aceitou.
Já era gosto dos dois
O compromisso firmou,
Partiu ao preparativo
Que pouco tempo durou.
A festa de casamento
Ainda hoje é lembrada
Como um evento bonito,
Muita gente convidada,
Fartura nas iguarias
E a música animada.
Depois lhe vieram as filhas
Que com cuidado criou;
Pensando num bem maior,
Deu instrução, educou.
Até onde conseguiu,
Cada menina estudou.
Dessas fala com orgulho,
Cada uma em sua estrada,
Fez a sua independência;
Uma a uma está casada –
Só uma insatisfação:
Queria alguma formada.
Mas sabe que deu o máximo
Do que pôde oferecer
E nas escolhas da vida
Cada um tem seu querer,
O importante é ser feliz
No caminho que escolher.
Garimpando pela vida,
O garimpo lhe serviu
Para encontrar algum ouro,
Mas logo alguém proibiu,
Nem mesmo a pesca nos rios
Ali nunca mais se viu.
Quem tinha essa atividade
Como meio de sustento
Teve que buscar saída,
Forçado pelo momento,
E encontrar alternativa
Mesmo em meio ao desalento.
Foi essa mais uma conta
No colar de afazeres;
Muito fez e trabalhou,
Cumprindo com os deveres
Que lhe renderam sustento
E ampliaram seus saberes.
Mas quem nasce pra servir
Jamais se encontra cansado;
Não obstante a labuta
De um dia trabalhado;
Se tem alguém precisando,
Vai atender ao chamado.
E como o chamado é
De quem está dando à luz,
A chuva não é desculpa
Nem o sol a fé reduz,
Porque um bebê chegando
É um apelo que seduz!
Aí não há diferença
Nem quem lhe diga: não vá!
São vidas lá confiando
Que o apoio chegará,
Rica, pobre, jovem ou não,
Jamais discriminará.
Foram mais de oitenta partos
E nunca perdeu nenhum.
Filhos e mães atendidos
Sem ter interesse algum,
Apenas que se salvassem
E assim fez cada um.
Muitas vezes, o trabalho
De parto era demorado;
Noite inteira ou mesmo o dia,
Mas Benzinha ali do lado
E quando vinha a criança
Rezava em separado.
Hoje é avó ou é mãe,
Pois tanta gente nasceu
Pelas mãos dessa mulher
Que em troca recebeu
Muito carinho e o respeito
De quem lhe reconheceu.
Trazer vidas para o mundo
É uma missão muito honrada
Pois o momento do parto
É uma hora sagrada,
E ter essa companhia
Deixa a mãe mais relaxada.
Quem disse que faz história
Com diplomas, bom discurso?
Ela é tecida na malha
Que, como o rio, tem seu curso
Quem sabe acertar a trama
A tece. Eis o recurso!
No Cunha ou Paracatu
Duvido quem não conhece
Dona Benzinha, a mulher
Que a região enobrece
Porque da sua jornada
O povo jamais lhe esquece.
De sangue neto, bisneto
E tetraneto também,
Está feliz com a vida
Por ter semeado o bem.
Seu legado? É seu exemplo
Que cada uma filha tem.
Tem seu nome e sobrenome
Que é Maria Pereira
De Araújo, tão comum
À Maria brasileira,
Mas o destaque é seu título:
Dona Benzinha Parteira!
BIOGRAFIAS
NILZA DIAS
Maria Nilza Dias Pereira, mais conhecida como Nilza Dias, nasceu em Guarujá, São Paulo, e foi criada na cidade de Poções, interior baiano. Filha de nordestinos, na infância e juventude, bebeu na fonte da cultura local em suas mais variadas manifestações, com destaque para a literatura de cordel. Radicada na Grande São Paulo desde 1996, é graduada em Pedagogia e Letras e professora da rede pública. Como autora participou das coletâneas Visão Poética 2020 e Intenções Poéticas, além de outras antologias.
Como cordelista, tem diversas publicações, entre elas Multidão Solitária, Luas de Mulher, A Lenda da Cachorra Helena e A Viúva e o Juiz. É autora, ainda, de uma versão rimada do romance Orgulho e Preconceito, de Jane Austen (Editora Florear) e de uma adaptação do romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, para a coleção Clássicos em Cordel (Nova Alexandria), no prelo.
LUCÉLIA BORGES
Nasceu em Bom Jesus da Lapa, sertão baiano, em 1981, e viveu muitos anos em Serra do Ramalho, região do Médio São Francisco, em companhia da bisavó Maria Magalhães Borges (1926-2004), uma grande mestra da cultura popular. Em 2006, mudou-se para São Paulo, onde reside até hoje, atuando como produtora cultural, xilogravadora e contadora de histórias. Dedica-se ainda à pesquisa das manifestações tradicionais do interior baiano, com destaque para as cavalhadas dramáticas de Serra do Ramalho e de Bom Jesus da Lapa, tema da dissertação de mestrado defendida na Universidade de São Paulo (USP).
Ilustrou vários folhetos de cordel e os livros A Jornada Heroica de Maria, de Marco Haurélio (Melhoramentos), Ithale: fábulas de Moçambique, do professor e escritor moçambicano Artinésio Widnesse (Editora de Cultura), Moby Dick em cordel, de Stélio Torquato (Nova Alexandria), além de Contos encantados do Brasil (Aletria), de Marco Haurélio, O Sonho de Lampião (Principis), de Penélope Martins e Marco Haurélio, e Muntara, a Guerreira (Abacate), de Penélope Martins e Tiago de Melo Andrade.
Realização
Ficha Técnica:
Autoria: Nilza Dias
Curadoria: Museu da Pessoa
Xilogravura: Lucélia Borges
Revisão e Consultoria: Marco Haurélio
Diagramação e Impressão: Gráfica e Editora Cinelândia
Maria Pereira de Araújo, a Dona Benzinha, foi, durante muitos anos, a responsável por trazer muitos filhos à luz, tornando-se a mãe de mais de oitenta crianças ao longo de quase cem anos de existência. Mãe, avó e bisavó, Dona Benzinha é filha de Cunha, distrito de Paracatu, onde seu pai era o chefe da Caretagem.