Conteúdos:
Quando vai cantar seu samba,
Alegria é sua marca.
Ela pega a tradição,
Tira do fundo da arca,
Da Irmandade da Boa Morte
Se tornou a matriarca.
Com noventa e cinco anos
É até tataravó,
É doutora honoris causa
E doutora do Bobó,
Fez história na Bahia
Cantando sobre o jiló.
Recebendo esse título
Da UFRB doutora,
Transmitiu o seu saber
De uma forma inspiradora.
Bem que seu pai tinha dito
Que seria professora.
Dona Dalva tem um sonho
Que por nada ela o escamba,
O seu pulso é bem firme,
Sua perna não é bamba
E tem fé de ver em vida
Uma casa pro seu samba.
Ser humano igual a esse
Não nasce em qualquer dia,
Trazendo o dom do ritmo
Embalado em poesia
Pra alavancar a cultura
Do Brasil e da Bahia.
Criada por sua avó,
Que era uma africana,
Veio no berço do samba,
Mas não no berço da grana
Nasceu foi dentro de casa
Dona Dalva Damiana.
Pra contar essa história,
Tem que ter é muito tato,
Com o encanto da música
Embalando cada fato;
Foi dentro de sua casa
Que eu ouvi esse relato.
A outra avó que tinha
Era grande lavadeira,
Levava Dalva criança
Pra caminhar na ladeira
Ouvindo sua vó cantar
Na terra de Cachoeira.
Quando ela abria a boca
Já vinha bonito som.
Dona Dalva era criança,
Porém nunca errava o tom.
Sua avó percebeu rápido
Que a menina tinha um dom.
Dalva, através do seu terno,
Faz a valorização
Pras mulheres que trabalham
Descascando grão a grão,
Que sustentam a família
Com feijão e camarão.
Pra semear a cultura,
Janeiro é o grande mês,
Criou toda indumentária
Chegou a vestir três reis,
Reisado de Cachoeira
Foi Dona Dalva que fez.
No casamento com a música
De ouro já fez a boda;
Ela está nesa estrada
Muito antes de ser moda,
Transformando em patrimônio
O som do samba de roda.
Era feito o caruru,
Também tinha reza-brava;
Desde quando era criança,
Que a Dalva acompanhava
O manto de sua avó
Era ela quem lavava.
Integrou todos os cargos
Com devoção verdadeira,
Foi juíza e escrivã,
Secretária e tesoureira,
Mas principalmente foi
Sambadeira de primeira.
Pra celebrar a baiana
Que prepara o Acarajé,
Que é um prato de Yansã,
Pra quem é do Candomblé,
Fez um terno em homenagem
A esse grande ato de fé.
Que a música dela brotava
Com muita facilidade,
O samba de roda tinha
Em Dalva continuidade.
A avó a pôs pra cantar,
Que responsabilidade!
A menina sem dinheiro
Pra brinquedo, pra peteca,
Pra pipa, pião, casinha,
Violão, tambor, rabeca,
Pegava espiga de milho
Pra fazer sua boneca.
E ali um mundo inteiro
Ela mesmo imaginava;
Tinha até enterro delas, Outra hora uma casava.
Criava bonito samba
Em que a boneca cantava.
E buscando em sua vida
Em tudo que acontecia,
Com ouvido nas palavras,
Tinha uma boa pescaria,
Ela esperta encaixava
Simpática melodia.
A vida não era fácil
Na terra de Cachoeira:
Seu pai era sapateiro,
A sua mãe, charuteira,
E ela querendo ajudar
Se tornar trabalhadeira.
Pela mãe ser charuteira,
Nesse ofício quis entrar,
Mesmo tendo só 13 anos,
Precisava trabalhar;
Cada trocado ajudava
Dez bocas alimentar.
Sair da escravidão,
Melhorar a sua sorte,
Acabar tempo do tronco,
Desviar-se do chicote,
Rezavam para a santa
Ao menos dar boa morte.
Se hoje tem desigualdade,
No outro século era abismo
O Candomblé e o Islã
Junto com catolicismo
Formavam a irmandade
Viva no seu sincretismo.
Que veio pra Cachoeira,
Na cidade se firmou,
Feita de mulheres negras,
O axé continuou
E a avó de Dona Dalva
A irmandade integrou.
Quando vai cantar seu samba,
Alegria é sua marca.
Ela pega a tradição,
Tira do fundo da arca,
Da Irmandade da Boa Morte
Se tornou a matriarca.
Essa irmandade é antiga,
Tradicional da Bahia,
Feita de mulheres negras
Que tinham economia
Pra ajudar escravizados
A comprar a alforria.
Através das vendas elas
Juntavam certo valor,
Constituíram irmandade
Na capital Salvador,
Buscando as melhorias
Pra o povo da sua cor.
Mas o pai de Dona Dalva
O seu sonho compartilha:
Transformar-se em professora
Era o destino da filha,
Ir atrás do ABC,
Estudar cada cartilha.
Então quem falou mais alto
Foi a tal necessidade
E arrumaram um esquema
Pra aumentar sua idade;
Na fábrica de charuto
Dalva foi a novidade.
Além de trabalhar duro,
Ela sempre foi simpática,
Dos negócios ao pandeiro,
Da cozinha à matemática;
Pra ser bom em uma coisa
É questão de muita prática.
Toda espécie de charutos
Dalva rápido aprendia.
Era o treze, era o sete,
Até o duplo ela fazia;
Com o futum do Arapiraca,
Trabalhava e tossia.
Um dia no seu trabalho
Pelo chefe foi chamada.
Ela nesse mesmo instante
Se sentiu apavorada.
“Por que tão me chamando?
Eu que não fiz coisa errada!”
É porque o seu talento
Se espalhou na redondeza,
O seu canto e seu samba
Evocavam a beleza
E a estavam convidando
Pra cantar dentro da empresa.
Se não tinha roupa extra
Como cantar sua prosa?
E queria apresentar-se
Com charme e perfumosa,
Mas não lhe emprestaram nada,
Chamando-a de catingosa.
Apesar desse racismo,
Contou com a irmandade.
Parecia até rainha
Ou então uma entidade
E a sua apresentação
Ficou para a eternidade.
E a partir do sucesso
Dessa nobre charuteira,
Começa a chover convite
De segunda a sexta feira
Até pra o terno da ajuda
Que acontece em Cachoeira.
Realização
Nascida em 1927, Dona Dalva Damiana, matriarca da Irmandade da Boa Morte, é um dos maiores ícones do samba de roda do Recôncavo Baiano. Depois de trabalhar a vida inteira como charuteira, tornou-se a primeira doutora Honoris Causa da cidade de Cachoeira.