Conteúdos:
O verso abre universo
Do alto da Serra do Moa
E nos saberes das plantas
Tem de ervas grande coroa:
Francisca Carneiro Nawa
É biblioteca em pessoa.
Ele não estava extinto,
Mas de maneira nenhuma.
Não mataram todo mundo,
Tinha sobrevivido uma,
E hoje em dia o povo Nawa
Arrodeia a Samaúma.
E luta pela sua terra
E pra ter o que comer,
Está firme, está forte,
Continuando a viver
E dos saberes do pote
Francisca guarda o poder.
E mantém a tradição
Com uma força verdadeira,
Está procurando alunas
Pra ensinar a ser parteira.
Ela é do povo Nawa
A mais velha raizeira.
Há muitos povos indígenas
Que vivem em todo o Brasil,
Mas a saga desse povo
Não sei se você ouviu
Sobre a etnia dos Nawas
Que por pouco não sumiu.
Era em Cruzeiro do Sul
Que o povo Nawa morava,
Mas o racismo era forte,
Naquela época imperava
E o ódio contra o indígena
Bem ligeiro se espalhava
Começou a crueldade,
No nazismo foi igual,
Seguiu-se a perseguição
Do invasor torpe e brutal.
Foi gigantesca a matança
Nessa encarnação do mal.
Pois a bala do assassino
Raramente ela se cansa,
Sede de sangue era intensa,
Foi muito tensa a matança,
Ceifando a vida do homem,
Velho, mulher e criança.
Esse conflito em Cruzeiro
Causou tal destruição,
Verdadeiro genocídio,
Após uma escravidão, Disseram até que os Nawa
Encontraram a extinção.
A Francisca se espantou
Com essa revelação;
A antropóloga insistiu,
Cheia de convicção,
E acabou que foi certeira
Essa sua intuição.
E muitos anos depois
Esse dia então chegou
E o menino Raílson
Um cacique ele virou,
Daria um outro cordel
As batalhas que travou.
Quando quiseram criar
Grande parque nacional
E expulsar os moradores
De uma forma trivial,
Ela disse que era Nawa
De um povo tradicional.
Além de aprender segredos
Da casca do cumaru,
E de virar caçadora
De cobra surucucu,
Ela viveu muita história
Quando morou no Peru.
Uma vez uma antropóloga
Que estava em uma viagem,
Encontrou dona Francisca
Ao longo de sua passagem
E fez uma profecia
Quando disse uma mensagem:
“Tá vendo esse seu filho
Que tem apenas dois anos,
Será cacique do povo,
Reduzirá muitos danos,
Será grande liderança
Destaque entre os humanos”.
Mas não teve um dilúvio
Quanto mais Noé com arca;
A violência foi bem forte,
Deixando profunda marca,
Porém sobrou Mariana,
Dos Nawa a matriarca.
Pra Serra do Divisor
Correu ela feito atleta,
Pois lá, quem sabe, os patrões
Podiam deixá-la quieta;
Onde formou a família
Na qual Francisca foi neta.
O verso abre universo
Do alto da Serra do Moa
E nos saberes das plantas
Tem de ervas grande coroa:
Francisca Carneiro Nawa
É biblioteca em pessoa.
E morando na floresta
Bem na beira do rio Moa,
Seu pai era seringueiro
Não passa va o dia à toa
Trabalhava pela mata,
Construía sua canoa.
Vivia em meio a floresta,
Não era nenhuma praça;
Todo dia ia à luta,
Pois nada vinha de graça,
Encontrou algo diferente
Quando foi atrás de caça.
Empenhado na procura,
Tava de mãos abanando,
Não achava a sua caça
E viu que estava rodando
E pra toca da jiboia
Ele ia se encaminhando.
Pouco de sabedoria
Um parente, com perícia,
Lhe disse para no ouvido
Guardar bastante malícia:
Arapuã cantou à noite
É sinal de má notícia!
Francisca não teme cobra,
Por ser uma benzedeira,
Vive curando seus filhos
Com saber de raizeira;
Também coleciona causos
No caminho de parteira.
Acontece da parteira
Se assemelhar ao pajé;
Um dos partos mais difíceis
Precisou de jeito e fé,
Foi de tirar um menino
Que estava nascendo em pé.
Agora se vem a gripe,
Tão ligeira que nos lasca,
O sujeito no molejo,
No fraquejo que se enrasca,
Francisca faz lambedor
Do Cumaru com a casca.
Ela teve treze filhos,
Nem grande, pequeno, médio,
Nenhum foi para hospital,
Quanto mais criado em prédio;
Se algum tivesse problema,
Ela fazia o remédio.
Por exemplo, um de seus filhos,
Que fora desenganado,
Quando levantou da cama,
Bastante adoentado,
Só com o chá da Macela
E outras ervas foi curado.
Porém quando percebeu
Esse mortal endereço,
Precisou despistar cobra,
Pela vida tinha apreço,
Deu dois tiros para o alto
Vestiu a roupa do avesso.
Mas a Francisca Carneiro
De cobra não tinha medo,
Pois no decorrer da vida
Aprendeu bastante cedo
Reza pra não ser picada
E guardou esse segredo.
Um dia ela vai pescar
Para ver se algo marisca,
Porém um enorme estrondo
Assustou dona Francisca
E ainda sua lamparina
Ficou num pisca não pisca.
Teve um estrondo enorme
E causou tal comoção:
Um ser relinchou bem forte,
Parecia assombração
Acendeu a lamparina
Com uma só oração.
Em um outro dia desses
Pulou pra praia, ligeira,
Ela teve que ser ágil,
Rapidez foi verdadeira,
Fugindo da Cobra Grande
Cuja fome era certeira.
Antes de entrar no mato
Já começa a se benzer,
Faz uma oração forte
Pro bicho não lhe morder
E de ferrão peçonhento
Conseguir se proteger.
Benzimento tem poderes
Palavras fazem manobras,
Sua espingarda protege
Do veneno e suas obras,
Caçando surucucus,
Venceu trinta e oito cobras.
Seu marido foi caçar,
Cachorro o acompanhou
E na hora de voltar,
Uma onça lhe pegou,
E sem sequer cochilar
A onça na hora caçou.
E tem vezes que a doença
Dá aquela derrubada,
Mas pra Francisca Carneiro
Isso é o mesmo que nada
Pra inflamação, Copaíba
É uma santa garrafada.
Realização
Francisca Batista Carneiro Nawa nasceu na região do antigo seringal São Salvador, em Mâncio Lima, no Acre. Lutou a vida inteira para provar que seu povo, vítima de massacres de invasores, não estava extinto. Trabalhou em seringais no Brasil e no Peru, além de desenvolver artesanato com cerâmica. Atuou também como parteira.
Alguns lances da vida de Francisca e de sua avó, tronco dos Nawa sobreviventes do genocídio, lembram a aventurosa História da Índia Necy, de Leandro Gomes de Barros, um raro cordel dos primórdios que retratam os nativos sob um prisma positivo, acima de tudo heroico. Hoje, o cordel tem na cearense Auritha Tabajara uma legítima representante dos povos originários.