Conteúdos:
Germano, através da fala,
É denúncia do racismo
Que até hoje é um abismo
E muita gente se cala.
E os donos da senzala,
Gente má, gente ruim,
Sugavam até o fim
O seu trabalho e conquista
Mas esse ponto de vista
Ainda hoje é assim.
Venho aqui pedir licença
Pra narrar mais essa vida
De pessoa bem vivida
De forma muito intensa,
Marcou no mundo presença,
Sendo raro e velho humano;
Conto causos do Germano
Que levou vida incomum.
Tinha cento e vinte um
E nem morreu naquele ano.
O nosso senhor Germano
Misturou sangue na veia:
Sua mãe era da aldeia
E seu pai foi africano,
Que, de modo desumano,
Pra cá ele foi trazido,
Veio para ser vendido
E usado como um escravo,
Mas o seu pai era bravo
E não se deu por vencido.
E ligeiro, observando
Português contar dinheiro,
Pega a trama pelo cheiro:
Estavam negociando
A venda pra algum bando.
Esperou vir o vacilo:
Ao caírem num cochilo
Se escondeu foi numa moita
Por sorte ninguém o açoita
E ali, aguarda tranquilo.
Quando os homens acordaram,
Perceberam sua ausência,
Foi devida a displicência
Da hora em que cochilaram
E tão logo eles pensaram
Que ele desapareceu:
“Você viu? Então nem eu”
E fugiram da responsa:
“Quem o levou foi a onça…
Foi a onça quem comeu!”
Quando eles foram embora,
O menino deu no pé,
Carregou somente a fé
Que é essa que revigora.
Caminhando mundo afora,
Solitário ele seguia,
Ia andando noite e dia,
Trabalhava na parada.
Mas voltava à caminhada
Até chegar na Bahia.
Ele parou numa aldeia
Depois da jornada a pé.
Lá desposou a “muié”
Que parecia sereia;
Sem medo de cara feia,
Era uma grande guerreira,
Além de exímia parteira.
Cruzados pelo destino,
Aí nasceu um menino
Pra andar na capoeira.
No fim de mil oitocentos
Nasceu Germano Araújo,
Que da vida foi marujo
E plantou seus alimentos,
Da roça os conhecimentos
Fariam dele “doutô”.
Nunca se alfabetizou,
Pois cresceu num cativeiro,
Mas depois grande vaqueiro
O menino se tornou.
Do povo da sua mãe
Que era indígena de fato,
Herdou apurado olfato,
Pode ser alguém estranhe…
Pra que cobra não lhe apanhe,
Sabia era pelo cheiro;
Jararaca no roceiro?
Cascavel atrás de tu?
Em pé a Surucucu?
O seu faro era ligeiro
Vó foi com cento e quarenta,
Mãe morreu com cento e vinte.
Sua infância é o seguinte:
Com a mão na ferramenta,
Que o roçado ele sustenta,
Além de tanger o gado
Pra Minas era enviado.
Muitas vezes ele foi
E tocando sempre o boi,
Atravessando o estado.
Também teve encantaria
Que ele aprendeu com a avó,
Pro bicho não lhe dar nó
Com oração que fazia;
O animal lhe obedecia,
Montava em burro sem sela,
Sua palavra era bela,
Com força de benzedeiro,
O boi lhe ouvia ligeiro
Como um pintor olha a tela.
Plantava a boa roça
Além de tanger o gado,
Tinha patrão desgraçado
Que apenas o saco coça,
Também era casca grossa,
Em propostas imorais
E com desejos fatais
Lhe pediam pra matar
Por dinheiro assassinar,
Porém isso ele não faz.
Germano, através da fala,
É denúncia do racismo
Que até hoje é um abismo
E muita gente se cala.
E os donos da senzala,
Gente má, gente ruim,
Sugavam até o fim
O seu trabalho e conquista
Mas esse ponto de vista
Ainda hoje é assim.
Criou ciência, o branco,
Pro sangue ficar mais “forte”;
Seu pai teve essa má sorte,
Foi cobaia num barranco.
Como aguentava o tranco,
Virou um reprodutor
Na fazenda do sinhô,
Emprenhava as sinhás
E não dá nem pra contar
Os filhos que ele gerou.
Entre aspas, outro “azar”
Foi o tal do seu padrinho:
Espancava sem carinho
Até o menino gritar
Nunca que quis batizar
Filha ou filho de ninguém,
A isso ele não convém,
Pois ardia como a brasa
Porradas vinda da casa
Do padrinho que ele tem.
Germano, quando ele via
Patrão no sono, no ronco,
E tinha escravo no tronco
Pendurado todo dia;
Ele, escondido, ia,
Desamarrava na hora
E o negro dava o fora,
Fugia do patronato,
Correndo dentro do mato,
Se entranhando na flora.
Plantava para o patrão,
Sonhava com roça sua;
Baixou o sol, veio a lua,
Pôs o seu plano em ação,
E as sementes de feijão
Germano furtou escondido,
Pôs na terra decidido,
Logo se surpreendeu:
Chuva forte ali bateu
E o feijão tinha nascido.
Mas o patrão descobriu
Queria dar-lhe uma surra,
Porém alguém lhe sussurra
“Surra? Onde já se viu!”
O menino lhe serviu
Olha seu novo roçado!
Patrão ficou animado
E até lhe premiou
Da roça que se apossou
E o feijão que foi lucrado.
Assim que fez 14 anos
Fugiu para Pernambuco,
Que o patrão era maluco;
Conheceu pernambucanos
E assim fez os seus planos
Com essa nova amizade.
Da roça foi pra cidade
E a cavalo, sem bagagem,
Com dois meses de viagem,
Vencendo a adversidade.
Também foi nessa idade
Se casou a primeira vez;
Não seria três nem seis,
Mas uma diversidade.
Treze vezes, de verdade!
E com treze casamentos,
Com causos e sentimentos,
Atravessou empecilhos
São sessenta e oito filhos
Com provas e documentos.
As décadas se passaram
Pra São Paulo ele migrou.
Trabalho lhe motivou
Veja só, lhe recusaram;
“Tu tá velho”, lhe falaram.
“91 anos de idade?”.
O prefeito da cidade
Não fez mais que se chocar.
Dinheirinho foi lhe dar,
Ainda achou que foi bondade.
Germano quer é trabalho,
Mas na terra do edifício,
Lhe disseram: “É difícil,
Sua idade é espantalho,
Nem se der o maior malho
Vai conseguir trabalhar
Emprego pra ti não há.”
Se esforçou desde garoto
Foi então morar no esgoto
Via sua casa inundar.
Depois conseguiu madeira
Pra fazer o seu barraco
E sair desse buraco
E com força verdadeira.
Sua casa foi a primeira
Que inaugurou a favela
E, morando dentro dela,
Na idade de cento e vinte,
Virou mendigo, pedinte
Andando pela viela.
Foi pedir xepa na feira,
Colecionou cicatriz,
Mesmo assim era feliz
Vivendo dessa maneira;
No barraco de madeira,
Que ergueu com próprio muque
Sendo honesto, sem um truque,
E com o olhar profundo,
Homem mais velho do mundo
Podia entrar no Guinness Book.
Ficha Técnica:
Autoria: Jonas Samaúma
Curadoria: Museu da Pessoa
Xilogravura: Artur Soar
Designer da Logo: Mariana Afonso
Diagramação: Cordelaria Castro
Impressão: Gráfica e Editora Cinelândia
Revisão e Consultoria: José Santos e Marco Haurélio
Jonas Samaúma é contador de histórias, rezador, educador ambiental e escreve livros desde criança, tendo publicado 6 livros e 2 cordéis: “Ganesha” e “Lula Livre – O Dia Em Que Chico César Libertou o Brasil”. Aprendeu a arte de cordelizar na íntima convivência com seu pai José Santos e no período que morou com o mestre do cordel Manoel Inácio do Nascimento no Ciclovida, sertão do Ceará. É criador do Poetarot e Contarot de Histórias e um dos criadores do Programa Vidas Indígenas no Museu da Pessoa. Para conhecer o trabalho do autor siga o instagram @jonasamauma ou escreva para o email: jonas.samauma@gmail.com
Artur Soar é baiano nascido em Salvador, descendente direto de gravadores de pedra da Chapada Diamantina. É amante da cultura popular e além de gravador é músico, compositor, capoeira e poeta. Conheceu a arte vendo seu pai entalhando pedras ardósia, e suas aventuras com a gravura começaram nos primeiros anos em que viveu em Lençóis-BA. Integrou diversas exposições coletivas na Bahia e teve sua primeira exposição individual internacional em Brighton-UK (2019).
Participou e ganhou prêmios pelo Brasil, como o prêmio IBEMA de Gravura em Curitiba-PR (2015); exposição de 30 anos do Museu Casa da Xilogravura – Campos do Jordão-SP (2017) e o concurso de Artes Plásticas do Goethe Institut – Porto Alegre-RS (2019). O reconhecimento nacional do seu trabalho rendeu a indicação para ser professor de Xilogravura do maior e mais célebre atelier gráfico da Bahia: oficina do Museu de Arte Moderna da Bahia.
Realização
Germano de Araújo nasceu em Vitória da Conquista, BA, no dia 22 de agosto de 1875, época em que já vigorava a Lei do Ventre Livre. Filho de pai africano e mãe indígena, passou sua infância trabalhando na agricultura. Mais tarde, tornou-se vaqueiro profissional, como tantos personagens retratados no cordel, o mais famoso de todos O Valente Zé Garcia. Viveu seus últimos anos na Vila Missionária, em São Paulo. Morreu em 1999.