Conteúdos:
Ela nasceu nessa terra
Por mãos de uma rezadeira:
Sua mãe a trouxe ao mundo
Com auxílio da parteira,
Intercedendo por ela
De maneira costumeira.
Peço aos leitores e ouvintes
Olhos e ouvidos atentos:
Do Quilombo São Domingos
Correram versos nos ventos,
Assobiando nas páginas
E alegrando os sentimentos.
Paracatu é a cidade
Onde está localizado
Em um espaço aprazível,
Minas Gerais, o estado
Cujo povo, no Brasil,
Por todos é aclamado.
São Domingos, padroeiro
Desse povoado amigo;
Lá vive a grande guerreira
Que presta honra ao povo antigo:
Dona Romilda de Fátima
Lá plantou o seu umbigo.
Ela nasceu nessa terra
Por mãos de uma rezadeira:
Sua mãe a trouxe ao mundo
Com auxílio da parteira,
Intercedendo por ela
De maneira costumeira.
Veio ao mundo em uma data
Importante na história:
O dia 13 de maio
Que marca esta vitória
Da luta por liberdade
Que os negros fazem notória.
Nossa Senhora de Fátima
Tem no dia a sua festa.
Romilda e tantos outros
Seu nome também empresta
Dessas coisas que somente
A fé é a luz que resta.
Era um tempo de mulheres
De muita sabedoria,
Ciência da natureza
Que de longe se benzia
Uma plantação de arroz
E a praga dali corria.
No local onde cresceu
Não havia água encanada.
Já nos riachos e córregos
Uma fartura danada
Pra trabalhar ou brincar
Ai, que vida abençoada!
Tampouco lá existia
Luz ou eletricidade,
Preservar os alimentos
Exigia habilidade,
Sem ter uma geladeira
Trazendo facilidade.
Quando aquela criançada
Demorava no brincar,
Percebia a luz do sol
No horizonte se abaixar.
Pouco depois, seu terreiro
Iluminava o luar.
Sem medos ou restrições
Reunidos noite adentro.
Se fosse noite sem lua,
Uma lamparina ao centro
E histórias de assombro
Que arrepiam por dentro.
Em momentos como esse
Que vó Josefa contou
As “três raças” que o Quilombo
De São Domingos formou
E das tradições passadas
Que só o tempo guardou.
Mas também do mal assombro,
Como a Mula-sem-cabeça,
Uma besta inflamada,
É difícil quem esqueça.
A criança logo aprende
Que a ela não se aborreça!
É comum estas histórias
Onde há mineração
Seja pelo ouro na terra
Ou pela exploração,
O encanto se alvoroça
Na mata em assombração.
O povo se reunia
Quando havia uma demanda
Para levantar uma casa
Ou deixar então mais branda
A tarefa no roçado,
Como o parentesco manda.
Era um momento bom
Pra dançar uma catira,
Batendo os pés no chão
Quando a madrugada vira
Em outro dia e o violeiro
Versos no improviso tira.
Romilda tornou-se jovem,
Vendo mudar seu local.
A energia chegou
Transformação radical:
Crianças ficavam mais
Na TV, não no quintal.
Veja que emoção tão grande:
Um freezer pra conservar
A carne e os alimentos
Não precisava salgar;
A fartura então crescia
Para o povo do lugar.
Mas, por outro lado, houve
Chegada de forasteiros:
O garimpo familiar
Com os seus modos caseiros
Passou a conviver com
A exploração de posseiros.
As dragas e o mercúrio
Matavam todo riacho:
Este berço natural
Via sua vida abaixo;
Foi necessário o governo
Pra acabar com este escracho.
A comunidade então
Passou a se organizar,
Encontrando outras formas
De seu povo prosperar,
Formando logo alianças
Com indústrias do lugar.
Ao lutar por seus direitos,
Criaram associações.
Romilda e as lideranças,
Promovendo tais ações,
Atraíram estudiosos
Que trouxeram outras visões.
Reconheceu-se que ali
Há muitas séculos havia
Um grupo de quilombolas
Que com força resistia:
Povo plantado na terra,
E que da terra vivia.
A titulação das terras
Ainda hoje não existe,
Mas a Fundação Palmares
Reconhece e assiste
A comunidade que
Desde a escravidão resiste.
Mantêm vivos os costumes,
Transmitem a tradição
Acendem sua fogueira
Buscando inspiração,
Em um celebrado santo,
O Batista, São João.
São João do carneirinho,
Menino santificado,
Guardião de brincadeiras,
Do folguedo e do reisado
Que irmandades e quilombos
Por anos têm preservado.
No Quilombo o folguedo
É chamado Caretagem.
Dança em louvor a São João
Forma colorida imagem
Feito dama e cavalheiro
Com homens no personagem.
Dura vinte e quatro horas
Esta folia tão bela,
De porta em porta cantando
Noite a dentro sem dar trela,
Recebendo em cada casa
A comida da panela.
Momentos que fortalecem
A solidariedade:
Ajudar, ser ajudado,
Isso é reciprocidade;
Que esses versos nos motivem
Viver em comunidade.
Para Romilda de Fátima
Fica o agradecimento
A bênção peço aos mais velhos,
Com o comprometimento
De fazer da tradição
Nosso sagrado alimento.
BIOGRAFIAS
GIGIO XUKURU
É neto de Euclides e Maria do Carmo, migrantes do Planalto da Borborema pernambucana, e de Nei e Therezinha, migrantes da Zona da Mata mineira. Nasceu e cresceu no ABC Paulista, filho de Gilberto e Rosani. Multiplicador das tradições orais, é aprendiz dos Mestres Alcides de Lima e Durval do Coco (CEACA), recebendo o primeiro incentivo de cultivar histórias e tradições orais de seu avô, Nei.
Bacharel e licenciado em história (FFLCH/USP), tornou-se mestre em Filosofia e Estudos Brasileiros (IEB/USP) trabalhando com movimentos de (re)existência e autodeterminação indígena no Sertão do Quixelô a partir de diálogos entre a História Oral, as tradições orais e os folhetos de cordel. No momento pesquisa a contribuição dos Xukuru e descendentes de Xukuru do Planalto da Borborema na poética e na tradição oral sertaneja, partindo de sua própria tradição familiar, que inclui seu tio-bisavõ, o lendário cordelista Laurindo Gomes Maciel
MAÉRCIO SIQUEIRA
Nasceu em Santana do Cariri (CE), mas mora em Crato, no mesmo estado desde 1983. Graduado em Letras (2001), iniciou-se na xilogravura em 1999. Depois de um intervalo sem se dedicar a essa arte, a partir de 2006 voltou a gravar, estudando junto a Carlos Henrique as técnicas que esse artista desenvolveu. Em 2007, participou de uma exposição coletiva “Incisão”, no Centro Cultural Banco do Nordeste- Cariri. Juazeiro do Norte (CE). Sua primeira exposição individual foi Impressão de Mundos, 2008, no Sesc-Crato. Foi presidente da Academia dos Cordelistas do Crato em 2009. Atualmente cursa Mestrado em Filosofia, em João Pessoa. Ilustrou vários livros, dentre os quais O Tribunal da Floresta (de Klévisson Viana), A Volta ao Mundo em Oitenta Dias em Cordel (de Pedro Monteiro), Cordel do Pequeno Príncipe (de Stélio Torquato) e a caixa temática 10 Cordéis Nota 10 (de Marco Haurélio).
Realização
Ficha Técnica:
Autoria: Gigio Xucuru
Curadoria: Museu da Pessoa
Xilogravura: Maércio Siqueira
Revisão e Consultoria: Marco Haurélio
Diagramação e Impressão: Gráfica e Editora Cinelândia
Romilda de Fátima nasceu no dia 13 de maio, data que em que foi assinada a Lei Áurea, e recebeu o nome em homenagem a Nossa Senhora de Fátima. Cresceu em meio às histórias da tradição oral e às manifestações culturais, como a catira e a carretagem. Foi garimpeira e presidente da associação de moradores da comunidade de São Domingos, onde nasceu.