Conteúdos:
Seu Zé, como sertanejo,
Aprendeu pescar sozinho,
Caçar em noite de escuro,
Sem amigo, sem vizinho,
Vendo o garrancho da sorte
Fazer letra em seu caminho.
Quem não sabe e faz pergunta
É sábio por perguntar,
Quem responde positivo
Tem consciência de dar
O pão do conhecimento
Pra o outro se alimentar.
Sou contador de história,
Sou pescador, sou vaqueiro,
Sou tropeiro e caçador,
Sou cordelista e violeiro,
Cantador de samba e chula
Rezador e tiraneiro.
Ninguém gasta conhecimento
Por ter ensinado alguém;
O saber morre com o dono
Quando se nasce ele vem,
Se leva tudo de volta,
Pois transferência não tem.
Se você souber, ensine.
Se lhe ensinarem, aprenda.
Pois a vida é uma escola,
Mas precisa quem defenda.
Em tudo existe valor,
Mesmo não estando a venda.
Quem sabe que conto história
Me conta pra ver contada
E saber se eu encurtei
Ou ela foi aumentada,
Se mais triste ou mais alegre,
Está sendo apresentada.
Acenderam as lamparinas
Para um socorro ser dado:
E José Campos Pereira
Ser nascido e amamentando
Na Fazenda Paraíso
Lugar de plantio e gado.
A mãe Rita Alves Campos,
De extremoso valor,
Seu pai, Henrique Crisóstomo,
Honrado trabalhador,
Defendendo a sua prole
De fome, frio e calor.
Paraíso era a fazenda,
Santa Rita o povoado,
Paracatu a cidade
Como sede do reinado;
Este é um pedaço do ontem,
Minas Gerais o estado.
Seu pai, meeiro em fazenda,
Sua mãe colaborando,
Roçava e queimava o mato,
Depois seguia plantando,
Os homens cavando as covas
E as mulheres “semeando.
Uma renca de meninos
Nasceu no seu ambiente:
Onze se contasse todos,
Pai feliz, mamãe contente,
Os dois só ficavam tristes
Quando tinha alguém doente.
O mal de sete levou
Cinco dos seus onze manos;
Joaquim com sete dias,
Hilda foi com sete anos,
João, gêmeo com Joaquim,
Com cinquenta e sete anos.
Valdemar, o caçulinha,
Com trinta e sete morreu.
Tem três irmãos em Brasília
E por sorte Deus lhe deu
Mais dois que residem aqui
Vizinho onde Zé nasceu.
O menino José Campos,
Quatro anos de nascido,
Teve direito à escola
E foi bem desenvolvido,
Esperto, pimpão, traquino,
Buliçoso e enxerido.
Os mais velhos lhe diziam:
— Zé, travessura é pecado!
Chame por Deus e se benza,
Confie no Verbo Encarnado,
Peça perdão dos seus feitos
Não siga o caminho errado!
Tantos pedidos fizeram,
Tanto conselho foi dado,
Mas Zé Campos não mudava,
Já estava inveterado;
Desde criança trazia
O nome de Zé Pecado.
Zé e seus irmãos na roça,
Pé descalço, mão calosa,
Banho de rio ou açude,
Noite frienta e chuvosa,
Padecia, mas achava
A vida maravilhosa.
A área sem luz elétrica,
Em vez de lhes dar tristeza,
Curtia o Sol se apagando,
Contemplava a lua acesa,
A seresta das cigarras,
Revelando a natureza.
A Cauã mandava agouro,
Sabiá pedia paz,
E o Galo de Campina
Balançava os braunais,
Agradecendo cantando
As belezas matinais.
O Vem-vem dava recado
Que estava vindo gente,
O Carão anunciava
Bom inverno certamente,
O Beija-Flor avisava
A chegada de parente.
As modinhas que o grupo
Ouvia na difusora
Formava dupla e cantava
No batalhão, na lavoura
Como em programas ao vivo
Que tinha na emissora.
Entre eles alguém tocava
Pé-de-bode e violão,
E a viola caipira
Afinada em cebolão,
Instrumento que arranca
Saudade do coração.
Falando em festa de santo
Santo Antônio, São João,
São Pedro e Santa Ana,
Também São Sebastião,
São Benedito e São Roque,
São Cosme e São Damião.
Dona Romana, a festeira,
Organizava contente,
Sem ter medo do cansaço,
Dava os pinotes na frente,
Buscando os aviamentos
Para uma festa plangente.
O desalento crescendo
Enfraquece a tradição,
A madrinha de fogueira,
Cântico em bata de feijão,
Carpideira em sentinela —
Ninguém encontra mais não.
Samba trançado e quadrilha,
Caretagem e corta-jaca,
Maculelê e batuque,
Jogo de navalha e faca
São partes da tradição
Que no Brasil se destaca.
O antigo vai pra cova,
Deixa a arte pra quem vem,
O novo não se interessa,
Achando que não convém.
Termina sem tradição,
Indo pra cova também.
Deus lhe mostrou certo dia
Uma belíssima menina,
Sorriso cativador,
Dentadura cristalina,
Pele morena, olhar meigo,
Voz mansa e cintura fina.
Ela o deixou marcado
Pela luz do seu olhar;
Ele também deixou marca
Que dava para notar,
Que o pensamento dos dois
Pedia pra se casar:
— “Rosalina Silva Campos
Se tornou minha senhora;
Nós somos pais de seis filhos,
Ela de mamãe é nora,
Eu sou genro do pai dela,
Estamos juntos até agora”.
Senhor Manoel Pereira
É o pai de Rosalina;
Conceição Ferreira Gomes,
Mãe de mensagem divina,
Sustentáculo de dois mundos,
Uma perfeita heroína.
Zé Pecado, além de ser
Meeiro em seu ambiente,
Foi soldado do exército,
Serviu a pátria contente,
Depois entrou na polícia,
Mas deu baixa novamente.
Deu baixa por não ter jeito
O drama que convivia:
Um superior maldoso
Que no quartel existia
Não lhe tinha algum respeito
Nem pagava o que devia.
Foram três anos e meio
Que Zé ficou humilhado
Por um cabo de cor branca
Que lhe deixava ultrajado:
“Negro isso, negro aquilo”
Até ferir Zé Pecado.
O cabo comprou de Zé
Mas se esqueceu de pagar;
Além da dívida, cresceu
O gosto de lhe humilhar,
A sede de o ofender
E o prazer de maltratar.
Sofreu bullying na escola,
Foi vítima de preconceito,
Quando serviu o Exército,
Foi um soldado perfeito,
Mas teve que pedir baixa
Forçado pelo despeito.
— “Como pobre vivo bem,
Sempre perto dos meus pais;
Fui militar e dei baixa,
Nem sei o tempo que faz,
Tenho teto, tenho roça,
Ser meeiro nunca mais”.
Zé se preparou pra vida,
Não tinha medo de nada,
Sabia sobre as mungangas
Que apareciam na estrada
Em noite de escuridão
No meio de encruzilhada.
Ver fogo voar nos ares,
Subir em pau e descer,
Fazer tudo clarear,
Depois desaparecer,
Ter que passar e passar
Pisar firme e não correr.
Seu Joaquim Buraqueiro,
Ouvindo de Zé Pecado
Como o fogo aparecia,
Deixando o povo assombrado,
Cavou até encontrar
Aquele ouro enterrado.
Depois que arrancaram o ouro
Nunca mais apareceu
Aquele fogo encantado
Que subiu e que desceu;
Alguém que morre de medo
Não sabe de que morreu.
Joaquim sumiu de lá,
Depois que arrancou o ouro:
Deu paz para aquela alma,
Acalentou seu choro.
Se não mudasse o rabudo
Tentava tirar seu couro.
— “Tem vez que meu pensamento
Dá mexida no passado
Pra lembrar de plantação,
Colheita, moagem e gado,
Coco, forró, carretagem.
Cururu, catira e prado”.
O manejo da enxada
Conhecido um dos cruéis,
Chamado ato grosseiro
De puxar cobra pra os pés
Com ele os matutos encheram
Os bolsos dos coronéis.
Seu Zé Pecado conhece,
Mas nega se acomodar:
Sofrimento não é coisa
De ninguém se acostumar;
O destino nos obriga
Fazer parte sem gostar.
Seu Zé, como sertanejo,
Aprendeu pescar sozinho,
Caçar em noite de escuro,
Sem amigo, sem vizinho,
Vendo o garrancho da sorte
Fazer letra em seu caminho.
Recorda que foi meeiro,
Recorda quando o patrão
Vinha buscar sua parte
Em mais de um caminhão
E o pouco que lhe sobrava
Carregava em um caixão.
Um tatu misterioso
Quase sempre aparecia,
Assombrando quem passasse:
Era grande a livusia:
Animais se assombravam,
Quem viesse a pé corria!
Em certa noite de inverno,
Tranquilo e despreocupado,
O destino colocou
Na rota de Zé Pecado
Aquele monstro assombroso:
O tatu mal-assombrado.
O casco emitia um som
De lataria em pedreira,
As unhas davam impressão
De um cavalo na carreira,
Zé apegou com Jesus
E se valeu da peixeira.
Zé tinha se preparado
Para a noite de caçada:
Patuá e orações
E arma bem carregada
Para a gangorra da vida
Não lhe tirar da jogada.
Aquele tatu gigante,
Em tudo descomunal,
Tinha escama no casco,
Mais dura que metal
E não saía do canto
Nem na ponta de punhal.
Zé Pecado nessa noite
Disse: — Eu estou preparado!
Se o tatu aparecer,
O bafafá é pesado…
Faço um furo nele e entro,
Vou sair do outro lado!
Só que eu entro a comprido,
Vou sair atravessado,
Mexo o que não foi mexido,
Corto o que não foi cortado,
Pra o mundo ficar sabendo
Da força de Zé Pecado!
Com esse tatu gigante
Foi briga a noite todinha,
Ninguém subia ou descia,
Não se ia, nem se vinha,
Zé Pecado e o tatu
Como dois galos de rinha.
A briga com o tatu
Durou quase a noite inteira;
Cacete, punhal, pistola,
Soco, granada e peixeira
A batalha mais ferrenha
Na caçada brasileira.
Zé já tinha combatido
Com crocodilo cinzento,
Onça preta, onça parda,
Todo bicho peçonhento:
O tatuzão trinca-ferro,
O mais bruto e violento.
Zé Pecado diz: — Tatu,
Eu posso lhe derrotar!
Pé direto e mão esquerda
Hoje à noite vou cortar!
Você vai morrer de raiva
Por não poder me pegar!
Falou assim e cortou
Do pé esquerdo o rejeito,
Bateu com um pau de pinhão,
A paulada fez efeito.
O tatu morreu de raiva,
Foi derrotado no pleito.
Não tendo mais fogo andante
Voando nos matagais,
Não tendo tatu gigante
Nas estrada vicinais,
Zé Pecado diz: —Tatu,
Adeus, até nunca mais!
Deus queira que você goste
Da narrativa mostrada.
Indo até Paracatu,
Cuidado na encruzilhada
Onde o tatu trinca-ferro
Tomou a última paulada.
BIOGRAFIAS
BULE-BULE
Antônio Ribeiro da Conceição, consagrado sob o nome artístico Bule-Bule, nasceu aos 22 de outubro de 1947, na cidade de Antônio Cardoso, no Estado da Bahia. Filho de um tiraneiro (cantador de tiranas), neto de vaqueiro, músico, escritor, compositor, poeta, cordelista, repentista, ator, cantador e contador de histórias. Ao longo de suas muitas décadas de carreira gravou seis CD’s (Cantadores da Terra do Sol, Série Grandes Repentistas do Nordeste, A fome e A vontade de Comer, Só Não Deixei de Sambar, Repente Não Tem Fronteiras e Licutixo), além do disco de vinil Tertúlia Visceral, em parceria com o gaúcho Pedro Ortaça; publicou alguns livros (Bule-Bule em Quatro Estações, Gotas de Sentimento, Um Punhado de Cultura popular, Só Não Deixei de Sambar e Orixás em Cordel), escreveu mais de oitenta cordéis e participou de vários seminários e congressos. Também é autor de várias peças teatrais e publicitárias. Ocupou ainda o cargo de gerente de Cultura da Prefeitura Municipal de Camaçari e foi diretor da Associação Baiana de Sambadores e Sambadeiras e da Ordem Brasileira dos Poetas da Literatura de Cordel. Recebeu ainda o Prêmio Hangar de Música no Rio Grande do Norte junto com Margaret Menezes e Ivete Sangalo. Integra a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, sediada no Rio de Janeiro.
ARTUR SOAR
Baiano nascido em Salvador, descendente direto de gravadores de pedra da Chapada Diamantina. É amante da cultura popular e além de gravador é músico, compositor, capoeira e poeta. Conheceu a arte vendo seu pai entalhando pedras ardósia, e suas aventuras com a gravura começaram nos primeiros anos em que viveu em Lençóis-BA. Integrou diversas exposições coletivas na Bahia e teve sua primeira exposição individual internacional em Brighton-UK (2019). Participou e ganhou prêmios pelo Brasil, como o prêmio IBEMA de Gravura em Curitiba-PR (2015); exposição de 30 anos do Museu Casa da Xilogravura – Campos do Jordão-SP (2017) e o concurso de Artes Plásticas do Goethe Institut – Porto Alegre-RS (2019). O reconhecimento nacional do seu trabalho rendeu a indicação para ser professor de Xilogravura do maior e mais célebre atelier gráfico da Bahia: oficina do Museu de Arte Moderna da Bahia.
Realização
Ficha Técnica:
Autoria: Bule-Bule
Curadoria: Museu da Pessoa
Xilogravura: Artur Soar
Revisão e Consultoria: Marco Haurélio
Diagramação e Impressão: Gráfica e Editora Cinelândia
José Campos Pereira, o Zé Pecado, memória viva de Paracatu, é um grande contador de histórias. Lutou, no plano da realidade, contra o preconceito, no tempo em que foi soldado., e foi também garimpeiro. No plano do fantástico, contra um tatu gigante, assombro dos matagais, e cavou a terra para arrancar dinheiro de alma do outro mundo.